Desde as epopeias mais antigas, o amor tem um fator de transformação das relações nas quais ele passa a protagonizar a história. Em Enuma Elish (XII a.C), observa-se vários elementos psicanalíticos que se apresentam na narrativa mítica, as relações edipianas que fazem brotar amor e ódio entre os deuses primórdios levando ao trágico fim de Tiamat. No texto bíblico escrito no final do primeiro século pela comunidade joanina, trás o anúncio de que “Deus amou o mundo de forma tão intensa que enviou seu próprio filho a fim de que todo que crer em sua mensagem terá a vida eterna” (João 3:16). A poetisa e filósofa brasileira Adélia Prata (2011, p. 83) também retrata o amor de Deus expresso na cruz, ferido por uma lança entre as costelas, e que se deixou ser humilhado a fim de se tornar cataplasma panaceico sob a ferida mortal da alma humana.
É interessante observar que na proposta religiosa, na vida cotidiana e no espaço clínico, o amor sempre traz um adendo; ora produz vida, ora a morte, ou, ora uma morte que produz vida. Na análise, Freud entende que não se sabe o momento específico quando acontece a transferência, contudo ele reforça que é de suma importância que aconteça, pois, caso não haja, fica inviável o processo de analise. Na transferência, pode acontecer que surja o sentimento de enamoramento por parte do analisando para com o analista, o qual se configura uma forma clara de resistência: “Primeiro e antes de tudo, mantêm-se na mente a suspeita de que tudo que interfere com a continuação do tratamento pode constituir expressão da resistência. Não pode haver dúvida de que a irrupção de uma apaixonada exigência de amor é, em grande parte, trabalho da resistência” (FREUD, 1996, p.100). Todavia, esse momento deve ser superado pelo trabalho terapêutico que busca reconhecer as demandas inconsciente; a identificação, repetição, idealizações, repressão, entre outras. O pai da psicanalise caracteriza o amor de caráter transferencial clínico ou não, como sendo um estado de repetição; ele afirma:
o amor consiste em novas adições de antigas características e que ele repete reações infantis. Mas este é o caráter essencial de todo estado amoroso. Não existe estado deste tipo que não reproduza protótipos infantis. É precisamente desta determinação infantil que ele recebe seu caráter compulsivo, beirando, como o faz, o patológico. (FREUD, 1996, p.105).
Uma vez que o amor de transferência se da na esfera de conexão analista/analisando, o psicanalista deve estar atendo a aquilo que se desloca entre as palavras, posturas que se dão durante a fala ou silêncio na metanarrativas do analisando. Para Freud (1996), “a técnica analítica exige do analista que ele negue à paciente que anseia por amor a satisfação que ela exige. O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência”. Sendo assim, a medida que os conteúdos do inconsciente vão se deslocando e o tratamento tende a produzir um efeito terapêutico, coloca o analisando em conexão com seus medos, suas carências e demandas que nem sempre devem ou podem ser atendidas. O analista precisa usar de manejo no processo de transferência, e conduzir o individuo a optar pelo princípio da realidade em detrimento ao princípio do prazer.
De certo modo, a transferência funciona como algo que dever ter sua justa medida, a fim de que não obstrua o trabalho de análise, por um lado, o psicanalista deve estar atento a contratransferência, em suas próprias reações; por outro, precisa cumprir seu labor analítico. Com efeito, caso o amor de transferência seja conduzido de forma adequada, é possível perscrutar as neuroses que em muitos casos se manifestam na repetição. É necessário passar por momento que flutuam entre o amor e o ódio, dentre tantos outros sentimentos que vem à tona, nos quais o manejo do analista é crucial para o sucesso da analise. Vale lembrar que o desejo é sempre inconsciente, uma vez que quilo que o paciente diz querer, sempre precisa ser analisado na tentativa de compreender aquilo que causa o desejo e sustenta uma carência.
Fica evidente o quanto durante o processo chamado de amor de transferência o trabalho do analista se encontrar em um fazer continua de manter esse amor, mas ao mesmo tempo, usando de manejo para que ele não se torne uma resistência que impeça a continuidade do trabalho. Nesse intento, cabe o fazer diagnóstico, e ao mesmo tempo conduzir o analisando para além de suas demandas, a fim de que o analisando elabore os próprios saberes. Logo, o amor que se constrói como vinculo na análise, por inúmeras vezes se manifesta em forma de choro, risos, carinho, ódio, e entre tantos outros sentimentos, por isso, passar por uma analise é um ato laborioso de amor que tudo sofre, crê, suporta e espera.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, Sigmund. O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913) – Obras Psicológicas Completas V. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2011.
ROUDINESCO E PLON. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
ZIMERMAN, David E. Manual de técnica psicanalítica – Uma revisão. Porto Alegre: Artmed, 2008.