Educação, para que ?

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Becker — Atualmente, na Alemanha, o termo planejamento educacional tem um uso sobretudo quantitativo. Tenho a impressão que, mesmo levando justificadamente em conta a situação de carência existente neste âmbito, corremos o

risco de discorrer repetidamente acerca de números e necessidades materiais, esquecendo que o planejamento educacional é também um planejamento de conteúdo. Na verdade não existe um planejamento quantitativo sem aspectos de conteúdo. Toda ampliação quantitativa de nossa estrutura escolar implica imediatamente conseqüências qualitativas. O exemplo mais prático é o da propaganda educacional, objetivando levar à escola superior a maior quantidade de pessoas. Nestes termos também se modifica a escola superior do ponto de vista do conteúdo. Nesta medida parece-me urgente incluir na discussão a questão do o que é e a questão do para que é a educação, o que não significa excluir considerações quantitativas, mas situá-las no contexto geral a que pertencem necessariamente.

 -—- Pelo que sei, justamente os estatísticos, na medida em que refletem sobre seu próprio oficio, concordariam com o senhor e, se posso me adiantar, também comigo: eles diriam que quaisquer considerações quantitativas possuem afinal um objetivo qualitativo de conhecimento. Quando sugeri que nós conversássemos sobre: “Formação — para quê?” ou “Educação — para quê?”, a intenção não era discutir para que fins a educação ainda seria necessária, mas sim: para onde a educação deve conduzir? A intenção era tomar a questão do objetivo educacional em um sentido muito fundamental, ou seja, que uma tal discussão geral acerca do objetivo da educação tivesse preponderância frente à discussão dos diversas campos e veículos da educação.

Becker —- Penso que nisto estamos inteiramente de acordo. O decisivo parece-me ser que vivemos num tempo em que, ao que tudo indica, o “para quê” já não é mais evidente.

Adorno —– O problema é precisamente este. É bastante conhecida a anedota infantil da centopéia que, perguntada quando movimenta cada uma de suas pernas, fica inteiramente paralisada e incapaz de avançar um passo sequer. Ocorre algo semelhante com a educação e a formação. Houve tempos em que esses conceitos, como dizia Hegel, eram substanciais, compreensíveis por si mesmos a partir da totalidade de uma cultura, e não eram problemáticos em si mesmos. Mas hoje tornaram-se problemáticos nestes termos. No instante em que indagamos: “Educação —— para quê?”, onde este “para quê” não é mais compreensível por si mesmo, ingenuamente presente, tudo se torna inseguro e requer reflexões complicadas. E sobretudo uma vez perdido este “para quê”, ele não pode ser simplesmente restituído por um ato de vontade, erigindo um objetivo educacional a partir do seu exterior.

Becker — Bem, confesso que para mim a situação em que o objetivo educacional tinha validade evidente de maneira nenhuma parece ser necessariamente a melhor. Mas esta diferença deverá constituir um ponto de partida. Não há necessidade de nos ocuparmos da situação por assim dizer anterior à perda da inocência, pois é certo que ela se encontra definitivamente perdida. O interessante é que agora sempre ressurge a exigência de restaurar a inocência, exigência com que nos defrontamos com mais clareza na evocação de novos modelos ideais (Leitbilder).Algum tempo atrás, além de questionar com muita propriedade esta ideologia dos modelos ideais em sua conferência “A caminho de novos ideais”, Georg Picht também tornou claro que hoje em dia a educação já não pode ser uma educação voltada a determinados modelos ideais. Aqui anunciar-se-ia uma inflexão decisiva na pedagogia moderna. Eu diria que atualmente a educação tem muito mais a declarar acerca do comportamento no mundo do que intermediar para nós alguns modelos ideais preestabelecidos. Pois se não fosse por outro motivo, a simples e acelerada mudança da situação social bastaria para exigir dos indivíduos qualidades que podem ser designadas como capacitação à flexibilidade, ao comportamento emancipado e crítico.

Adorno — É bastante conhecida a minha concordância com a crítica ao conceito de modelo ideal (Leitbild). Esta expressão se encaixa com bastante precisão na esfera do jargão da autenticidade (Jargon der Eigentlichkeit) que procurei atacar em seus fundamentos. Em relação a esta questão, gostaria apenas de atentar a um momento especifico no conceito de modelo ideal, o da heteronomia, o momento autoritário, o que é imposto a partir do exterior. Nele existe algo de usurpatório, E de se perguntar de onde alguém se considera no direito de decidir a respeito da orientação da educação dos outros. As condições — provenientes do mesmo plano de linguagem e de pensamento ou de não-pensamento — em geral também correspondem a este modo de pensar. Encontram-se em contradição com a idéia de um homem autônomo, emancipado, conforme a formulação definitiva de Kant na exigência de que os homens tenham que se libertar de sua auto-inculpável menoridade.

A seguir, e assumindo o risco, gostaria de apresentar a minha concepção inicial de educação. Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua idéia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Urna democracia efetiva só pode sei imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado.

Numa democracia, quem defende ideais contrários à emancipação, e, portanto, contrários à decisão consciente independente de cada pessoa em particular, é um antidemocrata, até mesmo se as idéias que correspondem a seus desígnios são difundidas no plano formal da democracia. As tendências de apresentação de ideais exteriores que não se originam ~ partir da própria consciência emancipada, ou melhor, que st legitimam frente a essa consciência, permanecem sendo coletivistas-reacionárias. Elas apontam para uma esfera a que de veríamos nos opor não só exteriormente pela política, mas também em outros planos muito mais profundas.

Becker — Concordo inteiramente com o senhor. Gostaria de enfatizar apenas que também no que se refere ao conceito do “homem emancipado” é preciso tomar cuidado para não convertê-lo em um ideal orientador.

Poderia apresentar ainda um argumento que talvez muitos professores apresentariam a partir de sua prática. Eles diriam: a juventude não deseja uma consciência critica. A juventude quer modelos ideais, quer exatamente aquilo que a senhor criticou há pouco, e eles lhes trariam uma grande quantidade de exemplos concretos da sua prática cotidiana que aparentemente lhes dariam razão. Existe um estágio no desenvolvimento humano em que todos os modelos ideais encontram-se ameaçados — penso no período da adolescência em seu sentido amplo —-, e o senhor sabe que existem pessoas em que esse período se prolonga por toda a vida. Esta ameaça aos ideais vincula-se a uma mania por modelos ideais, que não pode ser superada simplesmente por meio da oferta de ideais, do mesmo modo que a tendência imanente ao nacionalismo não pode ser detida mediante discursos patrióticos. Penso ser importante que o principio do esclarecimento da consciência seja aplicado na prática educacional em relação a esta idade. Assim ficaria claro que paralelamente à mania por modelas ideais presente nesta idade ocorre uma demanda de esclarecimento -— um fato demasiada e freqüentemente esquecido.

Adorno —- Ao que tudo indica, teremos novamente uma discussão acalorada. Concordo com o senhor; a idéia da emancipação, como parece inevitável com conceitos deste tipo, é ela própria ainda demasiado abstrata, além de encontrar-se relacionada a uma dialética. Esta precisa ser inserida no pensamento e também na prática educacional. As perguntas que o senhor apresentou pertencem em sua totalidade a uma prática que pretende gerar emancipação. Penso sobretudo em dois problemas difíceis que é preciso levar em conta quando se trata de emancipação.

Em primeiro lugar, a própria organização do mundo em que vivemos e a ideologia dominante — hoje muito pouco parecida com uma determinada visão de mundo ou teoria ou seja, a organização do mundo converteu-se a si mesma imediatamente em sua própria ideologia. Ela exerce uma pressão tão imensa sobre as pessoas, que supera toda a educação. Seria efetivamente idealista no sentido ideológico se quiséssemos combater o conceito de emancipação sem levar em conta o peso imensurável do obscurecimento da consciência pelo existente. No referente ao segundo problema, deverá haver entre nós diferenças muito sutis em relação ao problema da adaptação. De um certo modo, emancipação significa o mesmo que conscientização, racionalidade. Mas a realidade sempre é simultaneamente uma comprovação da realidade, e esta envolve continuamente um movimento de adaptação.

A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de well adjusted people, pessoas bem ajustadas, em conseqüência do que a situação existente se impõe precisamente no que tem de pior. Nestes termos, desde o início existe no conceito de educação para a consciência e para a racionalidade uma ambigüidade. Talvez não seja possível superá-la no existente, mas certamente não podemos nos desviar dela.

Becker —- Quando há pouco chamei a educação de um equipar-se para orientar-se no mundo, referia-me então a esta relação dialética. Evidentemente a aptidão para se orientar no mundo é impensável sem adaptações. Mas ao mesmo tempo impõe-se equipar o indivíduo de um modo tal que mantenha suas qualidades pessoais. A adaptação não deve conduzir à perda da individualidade em um conformismo uniformizador. Esta tarefa é tão complicada porque precisamos nos libertar de um sistema educacional referido apenas ao indivíduo. Mas, por outro lado, não devemos permitir uma educação sustentada na crença de poder eliminar o indivíduo. E esta tarefa de reunir na educação simultaneamente princípios individualistas e sociais, simultaneamente — como diz Schelsky —— adaptação e resistência, é particularmente difícil ao pedagogo no estilo vigente. Certa feita, quando discorria acerca de educação política para jovens professores, mostrei por que acredito que quem deseja educar para a democracia precisa esclarecer com muita precisão as debilidades da mesma. Eis um exemplo de como nossa educação constitui necessariamente um procedimento dialético, porque só podemos viver a democracia e só podemos viver na democracia quando nos damos conta igualmente de seus defeitos e de suas vantagens.

Adorno -— Sugiro neste ponto uma pequena reflexão histórica. A importância da educação em relação à realidade muda historicamente. Mas se ocorre o que eu assinalei há pouco – que a realidade se tornou tão poderosa que se impõe desde o início aos homens —, de forma que este processo de adaptação seria realizado hoje de um modo antes automático. A educação por meio da família, na medida em que é consciente, por meio da escola, da universidade teria neste momento de conformismo onipresente muito mais a tarefa de fortalecer a resistência do que de fortalecer a adaptação. Se posso crer em minhas observações, suporia mesmo que entre os jovens e, sobretudo, entre as crianças encontra-se algo como um realismo supervalorizado — talvez o correto fosse: pseudo-realismo – que remete a uma cicatriz. Pelo fato de o processo de adaptação ser tão desmesuradamente forçado por todo o contexto em que os homens vivem, eles precisam impor a adaptação a si mesmos de um modo dolorido, exagerando o realismo em relação a si mesmo, e, nos termos de Freud, identificando-se ao agressor. A critica deste realismo supervalorizado parece-me ser uma das tarefas educacionais mais decisivas, a ser implementada, entretanto, já na primeira infância.

Becker — O senhor fala da primeira infância. Sabemos hoje que até mesmo o objetivo da igualdade das oportunidades educacionais só pode ser realizado na medida em que eliminamos a barreira da língua numa idade anterior ao início da escolarização obrigatória. As pesquisas de Basil Bernstein e outros tornaram isto muito claro. De acordo com isto, a educação informal é mais importante do que a formal. Mesmo assim, creio que é preciso pensar se não devemos providenciar disposições de educação formal para amplos setores da população na faixa do terceiro ao quinto ano de idade, porque apenas nesta medida se criará igualdade de condições sociais iniciais. Mas o senhor se referia a uma outra importância da educação infantil precoce, de que por assim dizer para o comportamento interior, para a consciência da realidade, colocam-se decisões nesta primeira infância que em sociedades do passado possivelmente eram tomadas inconscientemente de modo correto. Quero deixar o problema em aberto. Certamente hoje em dia estas decisões não podem, na prática, ser tomadas corretamente sem consciência, de maneira que também aqui precisam intervir as instituições de uma preschooleducation, dispositivos de uma educação pré-escolar, com uma concepção clara a este respeito.

Menciono esta questão porque a Alemanha é um país que inventou o jardim-de-infância (Kindergarten), tornando-se por isto mundialmente famosa. Mas justamente porque o jardim-de-infância desde o início teve grande importância, ele não foi adequado a essas novas tarefas e hoje não se encontra mais à altura das mesmas. Parece-me que a tarefa de intermediar uma consciência da realidade, uma tarefa intimamente vinculada à relação entre teoria e prática, não pode por assim dizer ser tratada em nível universitário, mas precisa ser realizada a partir da primeira educação infantil mediante uma educação permanente durante toda a vida. Agora, justamente a idéia de uma desvinculação entre teoria e prática encontra-se consolidada de um modo tão infeliz na história da cultura alemã, que desde o começo barreiras inteiras precisam ser removidas para erigir na educação as bases para uma relação adequada entre teoria e prática.

Adorno — Aqui encontra-se uma tarefa bastante concreta para o que senhor chama de pesquisa educacional. Dito com muita simplicidade: seria preciso estudar o que as crianças hoje em dia não conseguem mais apreender: o indescritível empobrecimento do repertório de imagens, da riqueza de imagines sem a qual elas crescem, o empobrecimento da linguagem e de toda a expressão. Assim como o senhor, também pretendi discutir se a escola não pode assumir esta tarefa. Aqui nos deparamos com os fenômenos mais peculiares. Há bastante tempo vivenciei o caso de uma criança proveniente de uma família notavelmente musical, mas que já não conhecia obras cuja ocorrência era natural na casa de seus pais, como o Tristão, embora uma tal experiência musical ainda tenha sido substantiva e presente em seu próprio meio. Situações como essa teriam que ser analisadas. Ainda não temos idéia das transformações profundas que ocorrem principalmente nas chamadas camadas cultas da burguesia. Além disto é preciso lembrar que hoje — e isto é bom — inserem-se no processo educacional milhões de pessoas que antigamente não participavam do mesmo e que desde o início provavelmente não possuem condições de perceber aquilo a que nos referimos.

Sem nenhuma intenção polêmica, quero acrescentar que o lado institucional e, portanto, a realização objetiva de tais âmbitos da experiência são acompanhados de grandes dificuldades neste plano extremamente sutil, que tem algo a ver com a memória involuntária, e de uma maneira geral se refere ao involuntário. Para usar mais uma vez a referência à música: experiências musicais na primeira infância a gente tem, por exemplo, quando, levado a deitar na cama para dormir, acompanhamos desobedientes e com os ouvidos atentos à música de uma sonata para violino e piano de Beethoven proveniente da sala ao lado. Mas se adquirirmos essa experiência mediante um processo, ele próprio por sua vez ordenado, torna-se duvidosa a mesma profundidade da experiência. Não pretendo especular nesta oportunidade acerca dessa questão, mas apenas chamar a atenção para um ponto nevrálgico.

Becker — Lembro-me de uma conversa em que explicava os princípios do moderno planejamento no plano político a uma criança então com doze ou treze anos. E ela perguntou: “Como vocês planejam os erros?”. Do mesmo jeito me sinto agora, quando o senhor coloca a questão: “Onde fica em todo este sistema aquilo que é espontâneo, aquilo que é criativo?”. Eu diria que é preciso se conscientizar também deste fator na educação. Não podemos mais contar melancolicamente com a audição de uma sonata de Beethoven da sala ao lado, mas é preciso contar com a probabilidade de isto não ocorrer.

Penso ser necessário que, desde o inicio, na primeira educação infantil, o processo de conscientização se desenvolva paralelamente ao processo de promoção da espontaneidade, e neste sentido é extremamente interessante verificar como a metodologia da preschool-education (educação pré-escolar) dos Estados Unidos é muito mais imaginativa na invenção de métodos neste campo, simplesmente porque, para ela, esta necessidade colocou-se antes. Em uma conferência recente em Viena, Bogdan Suchodolski, provavelmente o mais importante pedagogo polonês, definiu a educação como “preparação para a superação permanente da alienação”.

Penso que no referido processo de atenção ao espontâneo e de simultânea conscientização realiza-se uma espécie de superação da alienação, e a partir desta perspectiva parece-me necessário rever a estratégia interna das várias disciplinas educacionais. O que quero dizer pode ser explicado melhor a partir de um exemplo da matemática. É bastante conhecida a história das pessoas que seriam totalmente desprovidas de vocação para a matemática, em que sempre tirariam nota “zero”, mas em compensação tirariam “dez” em filosofia e em latim. Hoje sabemos que esta situação se sustenta num ensino de matemática baseado em decorar fórmulas, mantendo a axiomática em segundo plano, enquanto o moderno ensino de matemática, tal como desenvolvido por exemplo nos países da OCDB (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) e ensinado na Europa ocidental e na União Soviética, apreende a matemática como princípio fundamental do pensamento. Enquanto princípio fundamental do pensamento criador ele já se apresenta numa idade em que o método vigente de ensino acreditava poder se basear apenas na decoreba. Poderia arrrolar situações semelhantes em relação a outras disciplinas. Penso que o senhor poderia me explicar melhor como, por exemplo, no plano da educação musical, o processo de conscientização e o processo da espontaneidade deveriam se inter-relacionar no caso da introdução à música moderna.

Adorno — Tenho uma certa prevenção em relação a isto. Eu me oponho por assim dizer à inflação instalada em relação ao conceito de “alienação”. Os chamados fenômenos da alienação baseiam-se na estrutura social. O defeito mais grave com que nos defrontamos atualmente consiste em que os homens não são mais aptos à experiência, mas interpõem entre si mesmos e aquilo a ser experimentado aquela camada estereotipada a que é preciso se opor. Penso aqui sobretudo também no papel desempenhado na consciência e no inconsciente pela técnica, possivelmente muito além de sua função real. Uma educação efetivamente procedente em direção à emancipação frente a esses fenômenos não poderia ser separada dos questionamentos da psicologia profunda.

Becker -—- Em sua opinião a ausência de experiência não poderia em parte ser causada pelo excesso de historicização de nossa educação, e com o fato de que, com a historicização, abandonou-se a experiência imediata da realidade contemporânea, e que, na verdade, trata-se de vincular uma consciência histórica correta, inclusive, a uma execução correta da experiência espontânea?

Adorno -— Provavelmente neste caso o fenômeno em causa não é tipicamente alemão, vinculado ao historicismo, mas sim mundial. Porém, fica a pergunta: afinal, o que é isto, esta inaptidão à experiência? O que acontece, e o que, se houver algo, poderia ser feito para a reanimação da aptidão a realizar experiências?

Becker —- Penso que esta questão da inaptidão à experiência tem uma vinculação bastante imediata à relação perturbada entre teoria e prática.

Adorno — Gostaria de começar alertando para um fato psicodinâmico. Todas essas coisas não seriam simplesmente uma ausência de funções ou de possibilidades. Mas elas seriam provenientes de um antagonismo em relação à esfera da consciência. Provavelmente em um número incontável de pessoas exista hoje, sobretudo durante a adolescência e possivelmente até antes, algo como uma aversão à educação. Elas querem se desvencilhar da consciência e do peso de experiências primárias, porque isto só dificulta sua orientação. Na adolescência desenvolve-se, por exemplo, o tipo que afirma —- se posso recorrer mais uma vez à música –—: “A época da música séria já passou; a música de nosso tempo é o jazz ou o beat”. Isto não é uma experiência primária, mas sim, se posso usar a expressão nietzschiana, uru fenômeno de ressentimento. Essas pessoas odeiam o que é diferenciado, o que não é moldado, porque são excluídos do mesmo e porque, se o aceitassem, isto dificultaria sua “orientação existencial”, como diria Karl Jaspers. Por isto, rangendo dentes, elas como que escolhem contra si mesmas aquilo que não é propriamente sua vontade. A constituição da aptidão à experiência consistiria essencialmente na conscientização e, desta forma, na dissolução desses mecanismos de repressão e dessas formações reativas que deformam nas próprias pessoas sua aptidão à experiência. Não se trata, portanto, apenas da ausência de formação, mas da hostilidade frente à mesma, do rancor frente àquilo de que são privadas. Este teria de ser dissolvido, conduzindo-se as pessoas àquilo que no intimo todas desejam. Há pouco o senhor afirmava com muita procedência que existe também uma exigência de esclarecimento, e no mínimo com força igual à exigência por modelos ideais. Isto é muito procedente. Este é provavelmente o aspecto decisivo daquilo que nos encontramos discutindo.

Becker — Sim, e acrescento que esta aptidão à experiência constitui propriamente um pressuposto para o aumento do nível de reflexão. Sem aptidão à experiência não existe propriamente um nível qualificado de reflexão.

Adorno —- Nisto concordo totalmente com o senhor.

Becker — Por esta via nos acercamos de uma interessante questão. As tarefas que há pouco atribulamos à educação já não são mais atribuições de alguma formação superior – mas elas também se colocam em planos que, vistos pelas representações hierárquicas da formação, situam-se mais embaixo. Justamente na formação profissional do trabalhador necessita-se uma aptidão à experiência desenvolvida e um elevado nível de reflexão, para preservar-se em situações em permamente transformação e suportando aquilo que o senhor designou como “pressão do mundo administrado”.

O que estamos discutindo aqui não pode ser relacionado ao colégio ou à universidade a partir de fórmulas consagradas, mas sim ao conjunto da estrutura educacional, da preschool-educatíon até a formação para idosos. Em todas essas formas da educação, inclusive naquelas que aparentemente têm objetivos práticos imediatos, tais como peculiaridades da formação profissional, questões como as discutidas há pouco são relevantes.

Adorno — Creio que isto se vincula intimamente ao próprio conceito de racionalidade ou de consciência. Em geral este conceito é apreendido de um modo excessivamente estreito, como capacidade formal de pensar. Mas esta constitui uma limitação da inteligência, um caso especial da inteligência, de que certamente há necessidade. Mas aquilo que caracteriza propriamente a consciência é o pensar em relação à realidade, ao conteúdo — a relação entre as formas e estruturas de pensamento do sujeito e aquilo que este não é. Este sentido mais profundo de consciência ou faculdade de pensar não é apenas o desenvolvimento lógico formal, mas ele corresponde literalmente à capacidade de fazer experiências. Eu diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais. Nesta medida e nos termos que procuramos expor, a educação para a experiência é idêntica à educação para a emancipação.

Becker — E antes de tudo a educação para a experiência é idêntica à educação para a imaginação.

Adorno —- Exato. Todas as iniciativas da chamada reforma educacional realista, por exemplo de Montessori, no fundo eram hostis em relação à imaginação. Elas conduzem a uma aridez e até mesmo a um emburrecimento a que precisamos nos opor sem que, por outro lado — tudo é complicado — caíamos nas mentirosas ficções de uma tia dos contos da carochinha.

Becker —— Em relação a instituições como as escolas de orientação montessoriana é preciso tomar cuidado porque é interessante como aqui freqüentemente uma teoria incorreta resultou numa prática acertada ou então uma teoria correta resultou numa prática equivocada. Uma das irracionalidades da pedagogia é que iniciativas pedagógicas decisivas são devidas a teorias totalmente equivocadas. Isto tem a ver com o fato de que, neste contexto, a tradução da teoria para a prática não é tão direta como talvez esperássemos em termos estritamente sistemáticos.

Adorno —- Incidentalmente quero enfatizar que, em nossa discussão, atingimos involuntariamente uma certa justificativa para o plano de relativa generalidade em que nossas considerações se movem: as estruturas a que nos referimos são prefiguradas pelo conjunto da sociedade, nem são especificas em relação a determinados estratos, nem se referem a meios educacionais específicos, como se poderia pensar. Isto ficou claro em nossa discussão: ela se refere a um plano subjacente à educação formal do eu.

E, finalmente, eu queria dizer algo acerca da individuação. O senhor referiu-se à educação para a individualidade, e por certo o antiindividualismo que dominou a pedagogia alemã durante tanto tempo, e que ainda se faz sentir, era reacionário, fascistóide. É preciso se opor ao antiindividualismo autoritário. Porém, por outro lado, esta não é uma questão fácil. A educação para a individualidade não pode ser postulada. Hoje existe uma ampla carência de possibilidades sociais de individuação, porque as possibilidades sociais mais reais, ou seja, os processos de trabalho, já não exigem mais as propriedades especificamente individuais.

Becker —- Perdão se o interrompo. Também no que se refere a esta questão aconselho um certo cuidado, porque a rapidez das mudanças no processo de trabalho recoloca novas medidas de comportamento individual. No fundo a preocupação dos educadores com a linha de montagem já é praticamente um tema pedagógico de anteontem. A necessidade de contínuas mudanças exige uma espécie determinada de disposições individuais novas.

Adorno —- Certo, entretanto sempre há algo de novo e afinal sempre novamente o mesmo. Receio que agora não seja possível discutir esta questão. Contudo creio que não se deve superestimar a suposta individuação do trabalho. E me restrinjo a expor isto como tese.

Becker — Além disto, eu diria que a permanente mudança nessas funções torna necessária uma espécie de educação para a resistência e para o controle das mudanças. Esta educação para suportar as continuas mudanças é aquilo que confere um novo significado ao indivíduo — novo, face a uma pedagogia tradicional que pensava o individual como sendo fixo e estático.

Adorno — Mesmo assim penso que atualmente a sociedade premia em geral uma não-individuação; uma atitude colaboracionista. Paralelamente a isso acontece aquele enfraquecimento da formação do eu, que de há multo é conhecida da psicologia como “fraqueza do eu”. Por fim, é preciso lembrar também que o próprio indivíduo, e, portanto, a pessoa individualizada que insiste estritamente no interesse próprio, e que, num certo sentido, considera a si mesma como fim último, também é bastante problemática. Se hoje o indivíduo desaparece — não tem jeito, sou um velho hegeliano —-, então também é verdade que o indivíduo colhe o que ele mesmo semeou.

Becker — Certo, mas se o indivíduo desaparece, então também a sociedade desaparecerá: isto também é claro para os hegelianos.

Adorno — Lembro apenas que há uma frase de Goethe, referindo-se a um artista de quem era amigo, em que diz que “ele se educou para a originalidade”. Creio que o mesmo vale para o problema do indivíduo.

Eu não diria que é possível conservar a individualidade das pessoas. Ela não é algo dado. Mas talvez a individualidade se forme precisamente no processo da experiência que Goethe ou Hegel designaram como “alienação”, na experiência do não-eu no outro.

A situação é paradoxal. Uma educação sem indivíduos é opressiva, repressiva. Mas quando procuramos cultivar Indivíduos da mesma maneira que cultivamos plantas que regamos com água, então isto tem algo de quimérico e de ideológico. A única possibilidade que existe é tornar tudo isso consciente na educação; por exemplo, para voltar mais uma vez á adaptação, colocar no lugar da mera adaptação uma concessão transparente a si mesma onde isto é inevitável, e em qualquer hipótese confrontar a consciência desleixada. Eu diria que hoje o indivíduo só sobrevive enquanto núcleo impulsionador da resistência.

Becker — Podemos concordar em que formamos as pessoas para a sua individualidade e ao mesmo tempo para sua função na sociedade?

Adorno — Do ponto de vista formal naturalmente isto é evidente. Entretanto acredito apenas que no mundo em que nós vivemos esses dois objetivos não podem ser reunidos. A idéia de uma espécie de harmonia, tal como ainda vislumbrada por Humboldt, entre o que funciona socialmente e o homem formado em si mesmo, tornou-se irrealizável.

Becker — Não. Trata-se de resistir a essas tensões, que são insolúveis tal como o é a relação entre teoria e prática, que se encontra no ponto central de nossa educação moderna.

Adorno —- Mas neste caso a educação também precisa trabalhar na direção dessa ruptura, tornando consciente a própria ruptura em vez de procurar dissimulá-la e assumir algum ideal de totalidade ou tolice semelhante.

Tradução: Wolfgang Leo Maar

Texto retirado e conforme o da página Debates