A relação entre religião e psicanálise sempre foi atravessada por tensões. De um lado, a fé cristã convida o ser humano a um movimento de negação de si mesmo para seguir a Cristo (cf. Lc 9.23), implicando renúncia do ego e entrega radical a Deus. De outro, a psicanálise, tanto em Jung quanto em Lacan, ilumina os abismos do inconsciente, onde habitam a sombra, o desejo e as máscaras sociais da persona.

No evento Fala Como Eu Falo – 4ª edição, somos convidados a refletir sobre uma pergunta provocadora: e se o meu desejo for pecado? Tal questionamento exige uma travessia entre fé, inconsciente e cultura, sem respostas prontas, mas com abertura para o mistério.
Evento presencial: Casa Liberté, Goiânia – GO
13 out – 2025 • 19:00
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A Negação de Si Mesmo e a Sombra
Jesus ensina: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me” (Lc 9.23). O mandamento da negação de si não é convite ao aniquilamento da identidade, mas à confrontação com aquilo que, em nós, resiste à entrega a Deus.
Na linguagem junguiana, poderíamos associar esse processo ao encontro com a Sombra. Jung define a sombra como “o conjunto das características pessoais reprimidas, negadas ou não reconhecidas pela consciência” (JUNG, Aion, 1951). Negar a si mesmo, neste sentido, é reconhecer que há em nós conteúdos obscuros – orgulho, idolatria do ego, impulsos destrutivos – que precisam ser colocados sob a luz da cruz.
A vida espiritualmente saudável, para Jung, não consiste em sufocar a sombra, mas em integrá-la: reconhecer sua existência, discernir seus efeitos e submetê-la ao diálogo com a totalidade do self. Para o cristão, isso significa apresentar diante de Deus as trevas interiores, buscando na graça de Cristo não apenas perdão, mas também transformação.
Persona, Identidade e Autenticidade
Outro conceito fundamental de Jung é o de Persona, a máscara social que utilizamos para nos adaptar às expectativas externas. Ele afirma: “A persona é um sistema de relação que serve para produzir uma impressão definida sobre os outros” (JUNG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo).
Na vida religiosa, a persona pode degenerar em farisaísmo: uma estética do religiosamente correto que encobre a fragilidade interior. Quando Jesus confronta os fariseus dizendo: “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mt 15.8), ele denuncia a persona espiritualizada que substitui a verdadeira relação com Deus.
A autenticidade da fé reformada nos chama a despir a persona religiosa e nos colocarmos nus diante do Deus que sonda corações (Sl 139.23-24).
Lacan: Desejo, Falta e Pecado
Para Lacan, o desejo é estruturado pela falta: “O desejo é a essência do homem” (LACAN, Seminário VI), mas sempre marcado pela ausência. Desejamos aquilo que nunca possuímos plenamente, e é precisamente essa incompletude que nos move.
O pecado, nesse horizonte, pode ser compreendido como a tentativa humana de preencher a falta com objetos ou experiências que não podem oferecer a plenitude que apenas Deus concede. A Escritura testemunha: “O meu povo cometeu dois crimes: a mim, a fonte de água viva, eles abandonaram e cavaram as suas próprias cisternas, cisternas rachadas que não retêm água” (Jr 2.13).
Assim, o desejo, quando não orientado pelo amor de Deus, torna-se idolatria. Quando atravessado pela graça, porém, revela-se como sede do Infinito, apontando para Cristo como o único capaz de saciar a alma (Jo 4.14).
Vida Espiritualizada e Relação com Deus
Jung reconhecia a importância da vida espiritualizada, ainda que não no sentido dogmático da tradição cristã, mas como experiência simbólica necessária ao equilíbrio psíquico: “A experiência religiosa é o encontro com algo que nos transcende” (JUNG, Psicologia e Religião).
Na teologia reformada, essa transcendência se encarna na revelação de Deus em Cristo. A verdadeira espiritualidade não é fuga do mundo, mas encontro com Deus que nos chama pelo Espírito a sermos transformados à imagem do Filho (Rm 8.29).
A psicanálise pode nos ajudar a identificar ilusões, personas religiosas e desejos equivocados. Contudo, somente a graça pode restaurar a relação com o Criador. O negar-se a si mesmo, portanto, não é anulação, mas libertação do falso eu para viver no verdadeiro Eu, reconciliado com Deus em Cristo.
Considerações Finais
A articulação entre fé cristã e psicanálise não visa fundir sistemas, mas sustentar perguntas que nos desinstalem. Entre a sombra e a luz, entre a persona e a autenticidade, entre o desejo e a cruz, somos convocados a uma travessia que não elimina o enigma da existência, mas o redime.
No horizonte reformado, confessamos com o apóstolo Paulo: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20). E, talvez, aqui se encontre a síntese entre teologia e psicanálise: viver a tensão do desejo humano marcado pela falta, mas orientado pela plenitude que só se encontra na graça de Deus.
Referências
JUNG, C. G. Aion: Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1989.
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.
JUNG, C. G. Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes, 2016.
LACAN, J. O Seminário, Livro VI: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
A BÍBLIA. Tradução Almeida Revista e Atualizada