Arquitetura do Sagrado: Uma Análise Histórico-Crítica da Formação da Bíblia
A Bíblia não caiu do céu pronta, encadernada e com zíper. Ela é, antes de tudo, uma biblioteca divina construída através de séculos de história humana, sob a providência soberana de Deus.
Para o leitor desavisado, a Bíblia parece um bloco monolítico, mas um olhar mais atento, informado pela teologia reformada e pela crítica textual que revela um processo complexo de seleção, preservação e tradução.

O cânon bíblico funciona, sob a ótica da semiótica, como um “código cultural” que estrutura a identidade da fé cristã (Filho, 2015).
O Conceito de Cânon e a “Régua” da Fé
A palavra “cânon” deriva do grego kanón, que significa “cana” ou “régua de medir”. Teologicamente, refere-se à lista de livros reconhecidos como divinamente inspirados e normativos para a fé e a prática.
No entanto, essa “régua” variou geograficamente e historicamente. Precisamos distinguir três categorias fundamentais:
- Canônicos: Livros aceitos universalmente como inspirados (os 66 da Bíblia Protestante).
- Deuterocanônicos: Do grego “segundo cânon”. São livros aceitos pela Igreja Católica e Ortodoxa (como Macabeus, Tobias, Judite), mas rejeitados pelos judeus e protestantes.
- Apócrifos: Significando “ocultos”. Para os protestantes, são sinônimos dos deuterocanônicos (não inspirados). Para a literatura acadêmica, refere-se a textos (como o Evangelho de Tomé) que nunca foram considerados sérios candidatos ao cânon oficial devido ao seu conteúdo gnóstico ou fantasioso.
A Divergência das Bibliotecas: Etíope, Católica e Protestante
A diferença no número de livros não é um mero detalhe matemático, mas teológico e estão classificados assim:
Bíblia Protestante (66 livros): Segue o cânon hebraico para o Antigo Testamento, estabelecido (segundo a tradição) pelo Concílio de Jamnia (c. 90 d.C.), que rejeitou textos não escritos em hebraico ou surgidos após o tempo de Esdras.
Bíblia Católica (73 livros): Baseia-se na Septuaginta (tradução grega do AT), que incluía os livros deuterocanônicos. O Concílio de Trento (1546), em resposta à Reforma Protestante, reafirmou dogmaticamente esses livros.
Bíblia Etíope (81 livros): A Igreja Ortodoxa Tewahedo da Etiópia possui o maior cânon de todos, incluindo livros como 1 Enoque e Jubileus. Isso demonstra como o cânon também é uma construção de “memória cultural” específica de cada tradição (Assmann, 2000).
Critérios de Canonicidade e a Exclusão Protestante
Por que a tradição reformada excluiu certos livros? A Reforma buscou o Sola Scriptura, voltando às fontes originais (ad fontes). Os critérios para um livro ser considerado canônico no Novo Testamento foram rigorosos (Bortnes, 2010):
Apostolicidade: Foi escrito por um apóstolo ou alguém ligado diretamente a um (como Marcos, ligado a Pedro; ou Lucas, ligado a Paulo)?
Ortodoxia: O conteúdo está em harmonia com a doutrina apostólica já estabelecida? (Campenhausen, 1972).
Catholicidade (Universalidade): O livro foi aceito e usado amplamente pelas igrejas do Mediterrâneo?
Livros gnósticos foram rejeitados porque falhavam na ortodoxia e na datação (eram tardios, do séc. II em diante). Já os deuterocanônicos do AT foram rejeitados pelos reformadores porque não faziam parte das escrituras que Jesus e os apóstolos usavam nas sinagogas da Judeia.
A Ciência por trás do Sagrado: Critérios Multidisciplinares de Escolha
Embora a teologia afirme a inspiração divina, a consolidação do cânon não ocorreu num vácuo místico. Ela suporta o escrutínio de disciplinas rigorosas como a antropologia, a história e a manuscritologia (ciência que estuda os manuscritos).
A exclusão de textos apócrifos e a inclusão dos canônicos passaram por um “filtro” natural que hoje podemos categorizar através de critérios científicos objetivos.
Entenda como essas ferramentas validaram a escolha dos textos:
- Critérios Linguísticos e Estilísticos: A análise filológica compara o vocabulário e a sintaxe dos textos. Os livros do Novo Testamento foram escritos em grego Koiné do primeiro século, permeado por semitismos (expressões aramaicas e hebraicas transliteradas ou traduzidas).
- Como definiu o Cânon: Textos gnósticos posteriores (séc. II e III) frequentemente utilizam uma terminologia filosófica neoplatônica estranha ao ambiente apostólico. Se um texto alegava ser de Pedro, mas usava um estilo de escrita e vocabulário típicos de duzentos anos após sua morte, ele era identificado como pseudepígrafo (falsa autoria) e descartado.
- Critérios Geográficos e Topográficos: A arqueologia e a geografia histórica analisam a precisão das descrições de lugares. Os evangelhos canônicos demonstram um conhecimento íntimo da geografia da Palestina antes da destruição de Jerusalém em 70 d.C. (nomes de pequenas vilas, topografia de Jerusalém, distâncias).
- Como definiu o Cânon: Muitos evangelhos apócrifos são vagos ou cometem erros grosseiros sobre a geografia da Judeia, revelando que seus autores não eram testemunhas oculares e provavelmente viviam em outras regiões (como o Egito ou a Ásia Menor) muito tempo depois dos fatos.
- Critérios Históricos e Cronológicos (Datação): Aqui entra a paleografia (estudo da escrita antiga) e a datação de materiais. O critério fundamental era a proximidade com os eventos.
- Como definiu o Cânon: Para ser canônico, o texto precisava pertencer à “era apostólica” (aprox. 50 d.C. a 95 d.C.). A análise histórica busca anacronismos. Por exemplo, se um texto menciona estruturas hierárquicas da igreja que só existiram no século II, ele é automaticamente desqualificado como testemunho original. Isso explica por que o Evangelho de Tomé, com sua teologia tardia, nunca foi considerado.
- Critério Antropológico e Cultural (Sitz im Leben): A antropologia cultural estuda o Sitz im Leben (o “ambiente vivencial”). Os textos canônicos refletem o judaísmo do Segundo Templo: as tensões entre fariseus e saduceus, os costumes rituais e a expectativa messiânica judaica.
- Como definiu o Cânon: Textos rejeitados muitas vezes apresentam um Jesus que rompe totalmente com a cultura judaica (uma visão antissemita típica de Marcião, por exemplo) ou que realiza milagres esotéricos sem propósito moral, destoando do ethos e da cultura da comunidade cristã primitiva (Filho, 2015).
- Critério Manuscritológico (Circulação e Recepção): A manuscritologia examina a quantidade e a dispersão das cópias.
- Como definiu o Cânon: A “regra da fé” não foi imposta de cima para baixo, mas reconhecida pela frequência de uso. Os livros que hoje formam nossa Bíblia foram os mais copiados, traduzidos e citados pelos Pais da Igreja (Patrística) em regiões distintas (Roma, Antioquia, Alexandria) simultaneamente. Se um livro era usado apenas por uma seita isolada e desconhecido pela igreja universal, ele falhava no teste da catolicidade (universalidade) (Bortnes, 2010).
Os Concílios e a Fixação do Texto
Ao contrário do que diz a cultura popular (um exemplo é o filme/livro O Código Da Vinci), o Imperador Constantino ou o Concílio de Niceia (325 d.C.) não “escolheram” os livros da Bíblia. A formação foi um processo orgânico de reconhecimento, não de imposição arbitrária (Lucena, 2023).
- Irineu (c. 180 d.C.): Já reconhecia os quatro evangelhos como pilares.
- Atanásio (367 d.C.): Em sua Carta Festal 39, listou exatamente os 27 livros do NT que temos hoje.
- Concílio de Hipona (393 d.C.) e Cartago (397 d.C.): Ratificaram o consenso que já existia nas igrejas.
| Concílio / Data | Principais Decisões e Impacto no Cânon |
| Sínodo de Jâmnia (c. 90 d.C.) | Consolidação do cânon hebraico (Antigo Testamento). Rejeitou textos não escritos em hebraico, servindo de base para o AT da Bíblia Protestante. |
| Concílio de Niceia (325 d.C.) | Combateu a heresia ariana afirmando a divindade de Cristo. Embora não tenha votado o cânon, definiu a ortodoxia doutrinária usada como critério para aceitação dos livros. |
| Concílio de Laodiceia (c. 363 d.C.) | Proibiu a leitura de salmos privados e livros não canônicos nas igrejas, produzindo uma lista de livros aceitos (o NT atual, exceto o Apocalipse na época). |
| Concílio de Cartago (397 d.C.) | Ratificou oficialmente a lista dos 27 livros do Novo Testamento proposta anteriormente por Atanásio, selando o consenso da Igreja no Ocidente. |
| Concílio de Trento (1546 d.C.) | Em reação à Reforma Protestante, a Igreja Católica dogmatizou a inclusão dos livros deuterocanônicos (apócrifos para protestantes) no seu cânon oficial. |
Preservação Textual: Papiros e Autoria
Como sabemos que o texto não foi alterado? A resposta está na papirologia. Conforme exploro em meus estudos sobre a origem do Novo Testamento (Borges, 2024.), possuímos fragmentos antiquíssimos que validam a integridade textual.
Papiro P52: Um fragmento de João datado de aprox. 125 d.C., derrubando teorias de que os evangelhos foram escritos séculos depois.
Papiros Chester Beatty e Bodmer: Contêm grandes porções do NT datadas do séc. II e III.
Os autores (Mateus, Marcos, Lucas, João) escreveram no século I. As cópias foram preservadas meticulosamente, e a ciência da crítica textual nos assegura que o texto grego hoje é 99,5% puro em relação aos originais.
A Guerra das Traduções: KJV, ARA, NVI e os Versículos “Desaparecidos”
Aqui entramos em um terreno de intenso debate atual.
King James Version (KJV) e o Textus Receptus: O Rei James I da Inglaterra convocou, em 1604, estudiosos para criar uma tradução que unificasse a igreja anglicana. Publicada em 1611, baseou-se no Textus Receptus (manuscritos bizantinos, mais tardios, séc. IX-XII). É majestosa, mas baseada em manuscritos mais recentes.
Almeida Revista e Atualizada (ARA): Segue uma equivalência formal, buscando fidelidade palavra por palavra, mas utiliza o Texto Crítico (baseado nos manuscritos mais antigos encontrados posteriormente).
Nova Versão Internacional (NVI): Utiliza a equivalência dinâmica (foco na ideia que cada texto quer passar).
A Polêmica dos Colchetes e Versículos Retirados: Muitos leitores da NVI ou mesmo da ARA notam que versículos inteiros (como o final de Marcos 16 ou a mulher adúltera em João 8) aparecem entre colchetes ou são movidos para notas de rodapé. Isso não é uma “conspiração para diluir a Bíblia”.
A crítica textual moderna descobriu manuscritos muito mais antigos (Sinaítico e Vaticano, séc. IV) que não contêm esses trechos. A ética acadêmica e teológica exige que as traduções modernas, como a NVI, informem o leitor de que tais versículos não constavam nos originais mais antigos, sendo prováveis adições posteriores de copistas para harmonização ou explicação.
A Bíblia Hebraica Completa e outras versões messiânicas tentam resgatar a terminologia judaica original, o que é valioso, mas deve ser lido com o mesmo crivo crítico.
Entender a formação da Bíblia não enfraquece a fé; pelo contrário, a amadurece. Percebemos que Deus utilizou a história, a cultura e homens falhos para preservar Sua Palavra inerrante. Como psicanalista, vejo na Bíblia o Grande Outro que nos interpela; como teólogo, vejo a revelação especial de Deus. A Bíblia que você segura hoje sobreviveu a impérios, concílios e ao tempo, permanecendo como a única regra de fé e prática.
Referências Bibliográficas
ASSMANN, J. Das Kulturelle Gedächtnis. München: C. H. Beck, 2000.
BORGES, R. A origem do Novo Testamento. Disponível em: https://professorrenato.com/a-origem-do-novo-testamento/. Acesso em: 24 nov. 2024.
BORTNES, J. Canon Formation and Canon Interpretation. In: Canon and Canonicity. The Formation and use of Scripture. Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 2010. p. 189-216.
CAMPENHAUSEN, H. V. The Formation of the Christian Bible. London: ADAM & Charles Black, 1972.
FILHO, J. A. A formação do Cânon bíblico: considerações a partir da semiótica da cultura. Estudos de Religião, v. 29, n. 1, p. 87-101, 2015. DOI: 10.15603/2176-1078/er.v29n1p87-101.
LUCENA, E. A formação do cânone do Novo Testamento. 2023. Disponível em: https://yausha.com.br/wp-content/uploads/2023/12/a-formacao-do-canone-do-novo-testamento-1.pdf. Acesso em: 24 nov. 2024.



