Charlie Kirk: Validação do delírio e a banalidade do mal

Compartilhe em sua Rede Social

Nossa sociedade parece ter sido aplacada com a maldição das Moiras, que trouxeram o anúncio de que aquilo que é justo se torna mal, e o mal passa a ser o justo. Este presságio sombrio ecoa o feitiço entoado pelas bruxas na tragédia Macbeth, de Shakespeare: “O justo é sujo, e o sujo é justo: paire através da névoa e do ar imundo” (Ato 1, Cena 1).

Este sentimento de inversão total dos valores permeia o espírito de nosso tempo, alimentando a sensação de que a fronteira entre a sanidade e o delírio se tornou perigosamente fluida.

Quando o absurdo se torna regra, quando a performance subjetiva exige o status de verdade inquestionável, não estamos apenas diante de excentricidades, mas à beira de um abismo onde, como nos alertou Hannah Arendt, o mal se torna banal.


Para Sigmund Freud, o delírio não é um mero erro de julgamento, mas uma reconstrução da realidade. É uma crença falsa, mantida com convicção inabalável, que serve como um remendo para uma lacuna insuportável na relação do sujeito com o mundo exterior.

O delírio funciona como um “remendo” para suprir uma “fenda” ou dano na percepção do mundo, especialmente na psicose, onde essa tentativa de recuperação é mais proeminente. O que testemunhamos hoje é a transposição deste mecanismo individual para a esfera coletiva.

A sociedade, em larga medida, parece operar sob a égide de um pacto delirante, no qual narrativas subjetivas são não apenas toleradas, mas validadas e impostas como realidade objetiva, independentemente de qualquer evidência empírica em contrário.

Esta validação coletiva do delírio é muito próximo, em termos de diagnóstico do que é apresentado por Jean Baudrillard e seu conceito de simulacro. Para Baudrillard, nossa era pós-moderna é caracterizada pela substituição do real por signos e símbolos.

O simulacro é uma cópia sem original, uma representação que não mais se refere a uma realidade concreta, mas a outras representações, criando o que ele denomina de “hiper-realidade”. É um mundo de modelos, códigos e performances onde a distinção entre o real e a simulação colapsa.

É precisamente neste ponto que a teoria do relativismo performático, notadamente associada a Judith Butler, se torna o motor desta hiper-realidade. A ideia de que a identidade é uma construção social, um efeito de discursos e performances repetidas, desancora o “eu” de qualquer fundamento ontológico.

A identidade deixa de ser algo a ser descoberto e passa a ser algo a ser incessantemente performado. Neste cenário, o “eu” se torna um simulacro: uma performance que não aponta para uma verdade interior, mas apenas para outras performances, validada por um sistema que se retroalimenta.


Esta exigência de performance contínua, no entanto, tem um custo existencial devastador, como bem diagnosticou o filósofo Byung-Chul Han em sua obra Sociedade do Cansaço. Han argumenta que a sociedade disciplinar, baseada na coerção externa, foi substituída por uma sociedade do desempenho, na qual o indivíduo se torna seu próprio explorador.

O imperativo não é mais “não deves”, mas “deves poder”. A pressão para otimizar, para performar, para ser um “empreendedor de si mesmo”, leva a um estado de exaustão e depressão. A performance que deveria libertar, adoece.

Este indivíduo exausto, imerso na hiper-realidade do simulacro, se aproxima perigosamente da figura do zumbi filosófico. Este é um ser hipotético indistinguível de um humano consciente em seu comportamento, mas que carece de experiência subjetiva, de uma vida interior genuína. Ele executa perfeitamente o roteiro, performa com excelência, mas por dentro é oco.

A sociedade do desempenho, ao valorizar a performance acima da essência, corre o risco de produzir uma legião de zumbis filosóficos: indivíduos funcionalmente adaptados à hiper-realidade, mas existencialmente vazios, alienados de si mesmos.


Aqui, o círculo se fecha. A validação do delírio (Freud) cria uma hiper-realidade de simulacros (Baudrillard), na qual o indivíduo é compelido a uma performance autoexploratória (Han, Butler), resultando em um esvaziamento existencial. Este é o cerne do mal-estar contemporâneo: um cansaço que brota de uma liberdade sem limites que se volta contra si mesma. É neste ponto que devemos introduzir um conceito crucial da sociologia: a Normalização do desvio.

Originalmente cunhado pela socióloga Diane Vaughan, o termo descreve um processo gradual pelo qual um comportamento ou padrão inicialmente inaceitável (um desvio) se torna progressivamente tolerado e, por fim, considerado normal.

Na psicologia social, vemos como a pressão do grupo e a repetição podem levar os indivíduos a aceitar como normais situações que inicialmente lhes causariam alarme. O que começa como uma violência — uma transgressão violenta contra uma norma de segurança, um princípio ético ou a própria estrutura da realidade — perde sua característica chocante através da repetição e da racionalização.

Quando o desejo de poder (Nietzsche – Vontade de Poder) e o relativismo se encontram, o conceito de justiça anunciado pelas Moiras é verbalizado por aqueles que estão no poder.

Joseph Stalin, na antiga União Soviética, declarou: “Mostre-me o homem, e eu lhe mostrarei o crime”. O crime anunciado por Stalin não se fundamenta na lei ou na moralidade, mas em seu próprio desejo e vontade de manter-se no poder.

Aquilo que é justo deixa de ter sentido para dar lugar ao que é sujo (Shakespeare, 2007). Este princípio foi aplicado de forma sistemática por Joseph Goebbels no regime nazista.

Sua propaganda trabalhou para retratar o povo judeu como um desvio perigoso. Através da repetição incansável, a violência da desumanização foi normalizada, tornando o genocídio não apenas palatável, mas, para muitos, um dever. O “mal se torna normatizado, normalizado, banal. Hannah Arendt.

Tragicamente, vimos este mesmo modelo atuar em nosso próprio tempo, quando a retórica de ódio normalizou a violência política a tal ponto que ativistas puderam não apenas desejar, mas executar e comemorar o assassinato de Charlie Kirk em 10 de setembro de 2025.

Ao normalizar o desvio da verdade, a sociedade perde a capacidade de reconhecer o desvio moral. O mal deixa de ser uma transgressão radical e se torna o simples ato de seguir o fluxo, de obedecer às regras da hiper-realidade, por mais destrutivas que sejam.

Reflexão


Diante deste quadro sombrio, o Evangelho surge não como mais uma performance, mas como um chamado radical ao Real. Jesus Cristo não nos convida a construir nossa própria verdade, mas a nos rendermos à Verdade que nos criou. A liberdade cristã não é a ausência de limites, mas a adesão voluntária a uma ordem divina que confere sentido e propósito à existência.

A cura para o mal-estar não está em uma performance mais bem-sucedida do “eu”, mas na negação deste “eu” que conspira contra o Criador em uma obsessão idólatra narcísica compussiva.

Jesus nos convida a encontrar a verdadeira identidade Naquele que é “o mesmo ontem, hoje e para sempre”, o filósofo existecialista Kierkegaard chamou essa centrega de “salto de fé”.

Referências


ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.

BORGES, Renato. Além da Angústia: A Jornada Existencial na busca por Deus. 2. ed. Goiânia, 2024.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

FREUD, Sigmund. O Mal-estar na Civilização. In: __. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXI.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

KIERKEGAARD, Soren. Desespero Humano (Doença até a morte). Trad. Adolfo Casais Monteiro. P. 187 a 279 da coleção Os Pensadores. Rio de. Janeiro: Abril Cultural, 1988.

SHAKESPEARE, William. Macbeth. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2007.

VAUGHAN, Diane. The Challenger Launch Decision: Risky Technology, Culture, and Deviance at NASA. Chicago: University of Chicago Press, 1996.