Diferença entre Mitos e Filosofia

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1) O que é o mito? Para que/quem ele serve?
O mito faz parte da história humana desde os primórdios e nunca deixou de estar presente: na pré-história, onde as pinturas rupestres tinham um significado mágico, ou na afirmação de John Lennon, na década de 60,

de que os Beatles eram mais importantes do que Jesus Cristo, o traço comum é a necessidade humana de criar “ídolos”.
O mito é um “relato das origens” e que, enquanto tal, tem uma função de instauração: só há mito se o acontecimento fundador não tem lugar na história, mas num tempo antes da história. O mito diz sempre como nasceram as coisas, as instituições, as regras etc.
Explica Mercia Eliade que o mito, ao contar uma história sagrada revela um mistério: “porque as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou heróis civilizadores, e por esta razão as suas “ações memoráveis” constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhos revelassem. O mito é, pois, a história do que se passou ‘naquele tempo’, a narração daquilo que os Deuses ou os seres divinos fizeram no começo do Tempo. ‘Dizer’ um mito é proclamar o que se passou ‘desde a origem’. Uma vez ‘dito’, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apoditica: funda a verdade absoluta.” O mito se institucionaliza e torna-se inquestionável: é assim porque dizem que é assim.
Como o mito ganha força? O que o torna tradição? O mito funda o rito, o ritual em que uma determinada ordenação do mundo é reafirmada. Em verdade, o rito muitas vezes reapresenta o mito e o reafirma como um modelo de ação para a comunidade.
Os mitos, então, se ligam a fundação do Estado e a preservação de certos interesses de classe. Esses interesses estão ocultos, no entanto, os mitos poderiam ser manipulados pelos que detém o poder, uma vez que, serviram de fundamento para os primeiros códigos de leis, em sua maioria de caráter consuetudinário (leis não escritas ).
As tradições sociais e os seus ideais tendem a ser tomados ou incorporados em mitos. A sociedade de consumo capitalista, em sua ânsia por vender e criar “novidades”, sempre repõe os seus ídolos ( da mesma forma que os “consome” ).
2) A mitologia grega e a explicação da Natureza
Ainda que as cidades-estado gregas fossem independentes entre si, a religião era um fator de unidade na Grécia Antiga. Embora as crenças divergissem com o tempo e o local, o politeísmo, o antropomorfismo, a ideia de que os deuses estariam continuamente interferindo na vida cotidiana dos homens e de que esses possuiriam sentimentos próximos aos humanos, são traços comuns na civilização grega.
Os deuses gregos estariam “por trás” de raios e trovões, vitórias e derrotas, riqueza e pobreza, inspiração e desencanto, etc. Eles personificariam sentimentos (como Afrodite, deusa do amor ), conceitos (como Moira, deusa do Destino) ou elementos da Natureza (como Poseidon, deus dos mares ). Entre eles haveria rivalidade e amizade, tramas e traições, delitos e punições.
Os feitos dos deuses formariam relatos (mitos) que eram transmitidos de geração à geração pelos aedos (poetas e declamadores ambulantes), que, inspirados pelos deuses, cantariam suas façanhas. As narrativas orais estavam propensas a serem modificadas com o tempo e davam base para a organização da estrutura social aristocrática da polis.
Atribui-se ao poeta Homero fato de ter escrito os poemas épicos Ilíada e Odisseia, nos quais narrava a luta entre gregos e troianos e a volta de Odisseu/Ulisses a sua pátria. Nessas narrativas, são constantes as interferências de deuses no transcurso dos acontecimentos. No entanto, na com a narrativa de Homero as potências misteriosas e ocultas dos deuses gregos ganham uma forma definida, o que abre espaço para a compreensão da divindade e para a perca de sua aura de mistério. O antropomorfismo descreve a divindade de uma forma que não aterroriza o homem por ser semelhante a ele (os deuses homéricos são mesmo animados por sentimentos e paixões humanas ).
Outro poeta importante foi Hesíodo, que escreveu a Teogonia, onde narra a origem dos deuses, e O Trabalho e os Dias, que narra as diversas eras pelas quais teria passado a humanidade.
Com o crescimento do comércio e com a busca de novos fundamentos para as leis que traduzissem as transformações econômicas, os mitos começam a dar lugar a uma busca por explicar a natureza (physis ) de maneira racional. Nesse esforço, surge a filosofia. Para o historiador Pedro Paulo Funari “O que há de novo na Filosofia, consiste, justamente, na humanização, na passagem dos relatos recebidos da mitologia para sua explicação pelos homens. A grande novidade da Filosofia consistiu em analisar as razões das coisas, à luz da experiência cotidiana, sem muita consideração pelos antigos mitos. Esta passagem não é resultado de um “milagre” inexplicável, mas se liga às diferenças entre as sociedades dos relatos mitológicos e o mundo das cidades, das poleis.
Ou seja, foi a nova vida material e cultural nas cidades, com suas novas relações sociais, que propiciou o desenvolvimento de uma nova forma de pensar sobre o mundo. Na mitologia, os deuses espelham um mundo de reis e nobres e o Olimpo é imaginado à imagem da sociedade aristocrática. Nas cidades gregas surgem novas formas políticas, o antigo poder real desaparece. O próprio nome para designar o rei, basileus, é abandonado e as antigas explicações perdem parte do seu sentido.
Chuvas ventos, tempestades, raios, antes manifestações do poder real/divino, puderam passar a ser fenômenos explicáveis pelo homem, problemas a serem discutidos pelos homens. A cidade, por sua parte, torna-se o lugar da discussão, na medida em que os homens se reúnem para tratar dos seus assuntos, não para obedecer ao soberano. Não são mais súditos do rei submetidos à sua vontade, mas sujeitos de seu próprio discurso em praça pública, de seu logos. Se dos tempos aristocráticos se mantém themis e thesmos, as determinações divinas, introduzem-se agora os nomoi, as regras ou leis estabelecidas pelos próprios homens. Isto permite que a nascente filosofia apresente duas características essenciais: um pensamento que prescinde do divino e que é abstrato. Não é, portanto, à toa que, mais adiante no século IV a. C. , Aristóteles define o próprio homem como aquele que vive na polis e nem que boa parte das reflexões filosóficas centrem-se sobre a cidade e a vida pública.”
Surgiram então as primeiras tentativas de compreender a Natureza sem recorrer a mitologia. A cisão entre racionalidade e mito não foi algo repentino, mas pode-se perceber mesmo uma espécie de continuidade entre o pensamento mítico e o pensamento filosófico. Não é a toa que uma das afirmações atribuídas a Tales de Mileto, considerado o primeiro a tentar compreender a natureza por meio de explicações racionais foi: “tudo está cheio de deuses”.
Outra opinião
Marilena Chauí pontua as diferenças entre mito e filosofia de forma diferente:
“Confrontando-se as narrativas míticas e a filosofia dos pré-socráticos, há uma série de diferenças que é preciso salientar. Em primeiro lugar, enquanto os mitos buscavam narrar como as coisas teriam acontecido em uma época longínqua e imemorial, muito antes do tempo presente, os filósofos se incumbiram da tarefa de explicar as características darealidade de qualquer tempo, seja ele passado, presente ou futuro. Em segundo lugar, é próprio dos mitos falar sobre a origem de todas as coisas referindo-se a genealogias divinas, ou então a rivalidades e alianças entre os deuses. Como vimos, os mitos explicam a origem das estações do ano por meio de um incidente envolvendo os deuses Hades, Deméter e Perséfone, da mesma forma que atribuem o surgimento dos males terrenos à rivalidade entre Zeus e Prometeu. A filosofia, por outro lado, evita recorrer a causas sobrenaturais, esforçando-se por encontrar na própria natureza as causas do surgimento dos seres e de suas transformações. E, em terceiro lugar, se as narrativas míticas não estavam livres de contradições, e caracterizavam-se pelo seu conteúdo fabuloso e muitas vezes incompreensível, os filósofos, por sua vez, não aceitam contradições em suas ideias, nem se utilizam de explicações fabulosas ou misteriosas. Ao contrário dos mitos, que têm sua autoridade baseada na pessoa que o narra – geralmente alguém a quem se atribui uma revelação divina –, a filosofia fundamenta sua autoridade na razão comum a todos os seres humanos, e por isso constitui um discurso coerente, lógico e racional.”