Dos Judeus e Suas Mentiras (Edição Revisão Editora)
Autor: Martinho Lutero
Título: Dos Judeus e Suas Mentiras Edição Analisada: Revisão Editora Ltda. (Década de 1990)
Contexto Original: 1543, Wittenberg
Introdução: O Texto e o Contexto Editorial

A obra Dos Judeus e Suas Mentiras (1543) representa o momento mais sombrio e polêmico da trajetória do reformador Martinho Lutero. Escrito três anos antes de sua morte, o tratado marca uma ruptura radical com sua postura inicial de tolerância, apresentando um programa de severa perseguição religiosa e social contra os judeus.
No entanto, ao analisar a edição brasileira publicada pela Revisão Editora Ltda. na década de 1990, o leitor se depara com um problema duplo: a violência do texto original de Lutero e a falta de idoneidade da editora responsável pela tradução. Esta edição, que alega ser a primeira tradução em português baseada em um original arcaico da Universidade de Harvard, é alvo de severas críticas acadêmicas e jurídicas. A editora admite, em nota, ter adaptado a linguagem para um “caráter popular” e omitido conteúdos teológicos complexos, o que compromete irremediavelmente a integridade do documento histórico.
Análise do Conteúdo: A Teologia do Ódio de Lutero
No que tange ao conteúdo escrito por Lutero (conforme verificado no arquivo), a obra é uma defesa apaixonada da “teologia da substituição”. Lutero argumenta que o sofrimento histórico e a diáspora judaica seriam provas da ira divina sobre um povo que rejeitou o Messias. Com uma retórica inflada, ele acusa os judeus de distorcerem as Escrituras, de blasfêmia e de usura, rotulando-os como “filhos do diabo” e uma ameaça à cristandade.
O ponto culminante do livro é a proposição de sete medidas brutais que antecipam tragédias modernas: a queima de sinagogas, a destruição de casas judaicas, o confisco de livros religiosos e bens materiais, a proibição do ensino rabínico e a imposição de trabalho forçado.
A Edição da Revisão Editora: Manipulação e Ilegitimidade
É imprescindível alertar que a edição da Revisão Editora não é considerada uma fonte confiável para o estudo sério deste período. A editora, fundada por Siegfried Ellwanger, é notória na historiografia brasileira por atuar como veículo de revisionismo histórico e negacionismo do Holocausto. Pesquisas de historiadores como Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus e Odilon Caldeira Neto apontam que a Revisão utilizava a publicação de clássicos polêmicos não por interesse acadêmico, mas como estratégia para validar teses antissemitas contemporâneas.
Há alertas contundentes no meio universitário e jurídico de que esta editora adapta textos para sustentar linhas ideológicas próprias. No caso desta obra de Lutero, a omissão deliberada de trechos e a adaptação do vocabulário distorcem o contexto teológico do século XVI para servir a um discurso de ódio moderno. Essa prática de instrumentalização de textos históricos foi, inclusive, repudiada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Habeas Corpus n. 82.424-2 (Caso Ellwanger), que firmou o entendimento de que o antissemitismo constitui crime de racismo no Brasil.
Diferentemente das traduções oficiais promovidas por editoras acadêmicas ou confessionais luteranas (como a Editora Sinodal ou Concórdia), a versão da Revisão não possui reconhecimento em círculos acadêmicos ou teológicos respeitados. Ela não consta nos grandes projetos de obras completas de Lutero, o que limita sua validade como fonte primária de pesquisa.
Conclusão
A leitura de Dos Judeus e Suas Mentiras é fundamental para compreender as raízes do antijudaísmo cristão e como uma teologia distorcida pode fundamentar a violência. Contudo, a edição da Revisão Editora Ltda. deve ser manuseada com extrema cautela crítica, ou preferencialmente evitada em favor de traduções acadêmicas fidedignas.
Esta publicação específica funciona menos como um documento histórico sobre Lutero e mais como um artefato do revisionismo brasileiro do século XX. Ao omitir partes “ásperas” e adaptar o texto para incitar o leitor moderno, a editora comprometeu a fidelidade histórica em nome de uma agenda ideológica antissemita, hoje amplamente condenada pela história e pelo judiciário brasileiro.
Referências Bibliográfica
Fonte Primária (Arquivo Analisado): LUTERO, Martinho. Dos Judeus e Suas Mentiras. Tradução de [Tradutor não informado – Edição Revisão]. [s.l.]: Revisão Editora, [s.d.].
Referências Críticas e Contextuais: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 82.424-2/RS. Paciente: Siegfried Ellwanger. Relator: Min. Maurício Corrêa. Brasília, DF, 17 set. 2003.
CALDEIRA NETO, Odilon. Negacionismo e anti-semitismo nos textos da Revisão Editora. Literatura e Autoritarismo, Santa Maria, n. 11, 2005.
JESUS, Carlos Gustavo Nóbrega de. Anti-semitismo e nacionalismo, negacionismo e memória: Revisão Editora e as estratégias da intolerância (1987–2003). São Paulo: Editora UNESP, 2017.
SARMENTO, Daniel et al. O caso Ellwanger: anti-semitismo como crime de racismo. Brasília: Senado Federal, 2004.



