A relação entre as igrejas e a ditadura militar no Brasil pode se tornar mais clara depois da chegada ao país de uma série de documentos do Projeto Brasil: Nunca Mais.
Um dos eventos que impulsionaram o golpe militar de abril de 1964 foi a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, composta em sua maioria por senhoras católicas, que percorreu as ruas de São Paulo dias antes do golpe, em 19 de março de 1964, e ofereceu um argumento a favor dos militares e dos grupos políticos e econômicos conservadores para a deposição do governo de João Goulart. Segundo os organizadores da marcha, Jango, como era conhecido o presidente, seria o representante dos interesses do comunismo a ser implantado no Brasil, principalmente depois das Revoluções Chinesa (1949) e Cubana (1959).
lgumas igrejas durante a ditadura militar contribuíram com a delação de militantes
Algumas igrejas durante a ditadura militar contribuíram com a delação de militantes
Os cartazes pediam respeito à democracia e às instituições, tais como: “Deputados patriotas, o povo está com vocês”; “Basta de palhaçada, queremos Governo honesto”; “A melhor reforma é o respeito à lei”; “Senhora Aparecida iluminai os reacionários”. Dessa forma, eles criavam uma situação contraditória, já que os manifestantes da Marcha pela Família apontavam com seus slogans para a quebra do regime democrático, pois pediam impeachment de Goulart e se colocavam contra as medidas do presidente, inicialmente eleito vice-presidente, mas que assumiu o posto maior do Estado após a renúncia de Jânio Quadros em 1961.
A argumentação religiosa de defesa da família e dos valores cristãos exposta na Marcha, contra o suposto comunismo do presidente, foi uma resposta ágil e direta ao comício feito por João Goulart e os seus partidários, realizado na estação Central do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, em 13 de Março de 1964. Neste comício Goulart apresentou seu plano econômico chamado de Reformas de Base, em que indicava a necessidade da reforma agrária e a intenção de estatizar as empresas de petróleo particulares, dentre outras medidas de cunho popular.
Mas a ação da Igreja católica e de seus fiéis não se resumiu a estas manifestações de ruas, pois durante a vigência do regime ditatorial ocorreu a mesma situação que atingiu outros espaços institucionais, com uma forte polarização política interna. O resultado foi uma ação de denúncias de participantes das igrejas ao governo militar, cujos resultados em muitos casos foi a prisão e tortura.
A situação não era exclusiva da Igreja católica, ocorrendo também em algumas Igrejas evangélicas, como mostram as primeiras investigações realizadas pela Comissão da Verdade, instaurada pelo Governo Federal no final da década de 2000. Segundo Paulo Sérgio Pinheiro, a Comissão da Verdade irá investigar tanto os casos de delações de militantes políticos ao regime quanto os casos de resistência em todas as igrejas que constam nos documentos.
Um dos casos de delação investigados pela Comissão da Verdade e que vieram a público é o de Anivaldo Pereira Padilha, membro da Igreja Metodista em São Paulo. Segundo reportagem da ISTOÉ Independente, Anivaldo era estudante de ciências sociais da Universidade de São Paulo (USP) e foi denunciado às forças policiais pelos irmãos José Sucasas Jr. e Isaías Fernandes Sucasas, pastor e bispo metodista da igreja que frequentava, devido aos seus posicionamentos políticos.
Os jovens batistas, metodistas e presbiterianos, principalmente, que professavam ideais liberais eram perseguidos internamente nas igrejas por líderes conservadores que ligavam o conflito da Guerra Fria às questões religiosas. Este motivo levou o pastor batista Enéas Tognini a convocar um dia de jejum e oração dos evangélicos para evitar que o Brasil se tornasse um país comunista. Ele se alinhou aos militares, não se arrependendo posteriormente: “Eles salvaram o Brasil do comunismo”.
Este e outros casos tornaram-se de conhecimento público devido, principalmente, aos documentos coletados pelo Projeto Brasil: Nunca Mais, encaminhados para a Suíça, para evitar sua destruição no Brasil. Eles ficaram arquivados no Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, mostrando que não eram apenas a favor dos militares as posições existentes dentro das igrejas. Entretanto, desde 14 de junho de 2011, encontram-se novamente no Brasil para esclarecer fatos obscuros do período