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Estético, ético e religioso, segundo Kierkegaard

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 Neste artigo, pretende-se fazer uma pequena analise dos três estágios, a saber; estágio estético, estágio ético e estágio religioso. Os três estágios são de grande importância na obra do filósofo dinamarquês Sören Aabey Kierkegaard. Pois, o objetivo dos três estágios é o resgate do indivíduo por inteiro. Não somente um indivíduo pensante, mas sim, um indivíduo que escolhe, que se angustia e que se desespera. Nessa perspectiva o indivíduo atravessa três estágios ao ir em busca de sua total realização: estágio estético, que estando presentes as necessidades instantâneas e a impossibilidade de realizá-las, acabam por trazer devido a isso a sensação de incompletude. Neste estágio é fundamental considerar o desejo. O estágio ético baseia-se em um ideal comunitário em torno de formas definidas, onde o indivíduo procura um lugar dentro da vida social. Kierkegaard aponta a aflição extrema do homem ao deparar-se com o vazio que não é preenchido nem pelos prazeres estéticos, nem pelas obrigações éticas. Há, por último, o estágio religioso, onde o indivíduo consegue se colocar diante do Absoluto, Deus. Neste estágio é possível uma reflexão frente à existência, pois o homem revê os valores encontrados nos estágios anteriores, redirecionado-os à algo de maior importância que é este encontro com Deus. Valoriza ainda a possibilidade de escolha que pertence ao homem, encontrando nesta o núcleo da existência humana. Assim sendo, pretende-se através dos três estágios mostrar o fundamento da filosofia kierkegaardiana, ou seja, o existencialismo propriamente dito, que com ele se inicia. Em Kierkegaard a importância daquilo que se designa como sendo os três estágios da existência humana, reside no fato de que, sem os mesmos, não seria possível ao humano conhecer a realidade existencial do indivíduo.

PALAVRAS-CHAVE: Fé, solidão, existencialismo, indivíduo, desespero, angústia.

 A obra de Kierkegaard, analisada sob os parâmetros atuais do conhecimento, mostra-se sumamente rica em aspectos a serem investigados, de modo a contribuir não apenas para a discussão filosófica, mas para a formação acadêmica e extra-acadêmica como um todo. Isso se deve ao fato dos escritos kierkegaardianos perpassarem diferentes esferas do saber, contemplando não apenas a dimensão filosófica, mas inclusive às esferas teológica e mesmo psicológica. Obviamente, no que concerne a esta última esfera, Kierkegaard aproxima-se da Psicologia pelo viés pré-psicanalítico e psicanalítico, tomando por parâmetro não o aparato conceitual existencialista do pensador, mas o contexto cronológico de redação de suas obras.

Não obstante, enquanto filósofo cuja obra constitui um marco contemporâneo-filosófico do Existencialismo, Kierkegaard não deixa de analisar temáticas que futuramente seriam abordadas conceitualmente pela psicologia, a saber: a Angústia; o Desespero; a Identidade Pessoal e a consciência-de-si enquanto um “eu”; a Alteridade.

Neste sentido, em um de seus primeiro escritos, intitulado Temor e Tremor,       Kierkegaard afirma que existem três estágios ou esferas [3] a serem percorridas pelo ser humano ao longo de sua “existência humana”. Nestes, Kierkegaard espelhou seu ideal Antropológico, no sentido de tematização do humano em busca de um estado ideal, rechaçando o Absolutismo da filosofia hegeliana e resgatando a dimensão subjetiva ou individual do Homem. Os indivíduos humanos já não seriam mais meras exemplificações de uma Lógica Absoluta – a Dialética de Hegel -, mas pessoas, indivíduos, seres cujas particularidades subjetivas são sinônimas do existir humano.

Em termos de Kierkegaard, a importância daquilo que designa como sendo os três estágios da existência humana reside no fato de que, sem os mesmos, não seria possível ao humano conhecer a realidade existencial do indivíduo:

Não existe travessia na vida que conheça a infelicidade da consciência. Ela é absolutamente inelutável, ligado à temporalidade cega o seu eterno fundamento. Mas nem todas as soluções para o problema a resolver, que em si se constitui a vida humana são equivalentes: alguns se fazem a contra-senso. Além disso, “toda a existência se classifica segundo graus de interiorização do indivíduo”, porque a vida é uma caminhada, ascensão rumo a si mesmo, isto ‘exige etapas’ […]. Em termos mais preciosos, a noção de etapa designa um estilo de vida, um tipo de aliança do temporal do eterno na existência. (Jolivet, 1957. p. 32-65)

    

A análise dos três estágios nos caminhos da vida, estético, ético e religioso expressa a realidade existencialista[4] do indivíduo enquanto ser – não apenas enquanto ser pensante -, mas um ser que escolhe, que se angustia e que se desespera.

Assim, a existência humana está sujeita a experimentar as mais diversas paixões, desejos prazeres. Isto significa que o homem não é somente espírito, tampouco apenas vontade. O indivíduo, para que consiga realizar a síntese, experimentará inúmeras situações que o conduzirão a harmonização e a unificação de sua realidade […]. A verdade da existência não se entrega de uma vez, e sim por etapas sucessivas, ao longo de uma caminhada, de uma história que somente a morte surpreende em seu não acabado constitutivo. Não obstante, esse fim se alcança à medida que as estágios existenciais são superados que quer dizer, na medida em que o indivíduo elege a si mesmo, que vive sua liberdade de diferentes modos.[5]  Por isso, homem algum nasce pronto, acabado e tampouco nasce com a síntese realizada. Esses estágios são “determinantes existenciais” do caráter humano, uma instância que se oferece ao indivíduo, ao longo de sua existência, para o encontro de sua verdade mais própria (Secco, 2004. p. 928).

Deste modo, Sören Kierkegaard encontrou o seu próprio caminho, ou seja, compreendeu o destino existencial nos estágios da vida. Do mesmo modo, por esse ideal lutou contra o mundo, combateu a filosofia racionalista e, sobretudo, renunciou até mesmo o matrimônio[6], em nome daquilo que considerava um amor maior. Tudo isso em busca da verdade.

O que me falta é ter clareza comigo mesmo sobre o que devo fazer e não sobre o que devo conhecer, a não ser a medida em que as idéias claras devem perceber toda a ação. Trata-se, para mim, de compreender qual é a minha vocação, ver o que a Providência quer propriamente que eu faça, Trata-se de encontrar uma verdade para mim, encontrar a idéia pela qual eu possa vier e morrer (Kierkegaard, 1941, p. 51-52).

Segundo o filósofo, não basta uma pessoa saber sobre a verdade para conhecê-la, mas sim experimentá-la. Nesse aspecto, Kierkegaard refuta o cogito cartesiano[7], sob a insígnia de que neste, a idéia precede à existência – não com base em uma interpretação vulgar ou superficial do princípio cartesiano, mas sim no sentido de ordem de importância. Para Kierkegaard é a realidade que precede toda a idéia, em ordem de importância e em conformidade com o seu existencialismo.

Kierkegaard não está preocupado com uma realidade ideal, onde exista a idéia perfeita de todas as coisas que podemos ver e com existências abstratas (metafísica), mas com a existência concreta e específica. É neste ponto que Kierkegaard é chamado de existencialista. Pois resgata o homem, ou seja, valoriza o indivíduo em sua existência. 

1 – Estágio Estético:

O Primeiro estágio no caminho da existência humana é o estético. A pessoa que passa por esse estágio é aquela que pode até ter uma vida social como a dos outros, debater temas importantes, mas é incapaz de ser aberto no relacionamento com outras pessoas e não tem direção própria. Pois é um caçador de sensações e melancólico, sua vida esta continuamente voltada ao prazeroso.

Quem vive no estágio estético vive o momento e busca sempre o prazer. Bom é aquilo que é belo, simpático ou agradável. Desse ponto de vista, tal pessoa vive inteiramente no mundo dos sentidos. O esteta acaba virando joguete de seus próprios prazeres e estado de ânimo. Negativo é tudo aquilo que aborrece, que “não é legal”, como se costuma dizer hoje em dia (Cf.: Gaarder, 1995, p. 408.).

O próprio Kierkegaard experimentou a esteticidade. Torna-se um pensador errante e poeta melancólico:

“É verdadeiramente terrível, quando em certos momentos, penso em todo esse fundo sombrio de minha vida, desde os primeiros anos. A angústia, com o qual meu pai me enchia a alma, sua terrível melancolia, a multidão de coisas que não posso sequer apontar. Essa mesma angústia me dominava diante do cristianismo” (Reichman, 1978, p. 19).

Os apontamentos kierkegaardiano de 1835 mencionam “Don Juan, Fausto e o Judeu Errante” com o qual o esteta se identifica de maneira privilegiada.  (Farago, 2005, p. 121) [8].  Sua insolência diante da ordem estabelecida,  Kierkegaard respeita e ao mesmo tempo ataca, manifesta-se em um tema literário que nesta época lhe prendeu a atenção: “o mestre ladrão” que rouba os ricos para socorrer os pobres, personagem que ficou apenas neste estado de esboço, pois nesta época explode o conflito com seu pai[9]. A partir dessa revelação, Kierkegaard compreendeu que a melancolia que obscurecia a vida de seu pai, a névoa que encobria sua alma, estava relacionada à consciência de ter cometido esses pecados[10].  

Desde então, Kierkegaard passou a ter uma vida atribulada o que o levou até mesmo a romper o noivado com Regina Olsen, a bela jovem que sempre amou e teve grande admiração. “Ter conhecido o amor concede à natureza humana uma harmonia que nunca mais se acaba completamente” (Kierkegaard, 1989, p. 32). 

Kierkegaard narra, com certo distanciamento, a história do seu amor rompido e confidencia em seu diário: “Dilacerado como estava por dentro de mim mesmo, sem a mínima chance de levar uma vida de felicidade terrestre […], não era admirar então, se, por desejo insensato, eu não captei o lado inteligente do homem, me apeguei com força a ele e assim o pensamento de minha riqueza intelectual foi meu único consolo, e as idéias minha única alegria” (Cf.: Kierkegaard, 2005, p. 53). 

O “espinho na carne” ao qual sempre se refere Kierkegaard, como aquilo que bloqueou o seu desenvolvimento vital, é a desproporção entre o físico e psíquico, a hiperatividade mental à qual somou aquela melancolia que nunca cessou de atormentá-lo e que os médicos consultados confessam não ter meio para curar.

A inquietação e angústia que o acompanhavam está expressa em seus textos íncluindo a relação de angústia e sofrimento que ele manteve com o cristianismo, herança de um pai extremamente religioso, que impunha de modo exacerbado os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião do Estado.           

Com todos esses acontecimentos, Kierkegaard começou a ter uma vida desenfreada[11] de gozo e de prazer, principalmente depois da morte de seu pai, passou a viver apenas da herança e a ter uma vida de solidão.

Kierkegaard vivenciou e passou pelo estágio estético. Só quem viveu realmente neste estágio é capaz de testemunhar o gosto amargo de uma vida, um contentamento descontente por assim dizer. Deixou-se entorpecer-se pela embriagues lúcida da vida estética, sujeito as sensações, fascinada pelo exagero, pela inversão das categorias paternas. Falou-se desses anos como do “caminho da perdição”, julgou mais tarde esse período de sua vida com maior indulgência, dizendo que “o vinho deve fermentar antes de clarear”.Freqüentava então os banquetes, as barulhentas recepções onde, com seu espírito brilhante. se impunha à admiração dos companheiros de prazeres. Mas voltava para casa muitas vezes bêbado e completamente desesperado. Refere-se à decepção que sofreu depois de ter sondado o mar sem fundo dos prazeres: senti o poder quase irresistível com o qual de mão em mão um prazer arrastado ao outro, este gênero de entusiasmo adulterado que é capaz de produzir, o tédio, a dilaceração que vem depois. (Cf.:Farago, 2005, 33).

No entanto Kierkegaard, como visto acima, prestou homenagem a Dom Juan que “o expulsou como Elvira das trevas do claustro”. Nem tudo, então é negativo naquilo que ele denomina o estético, isto é: o fato de entregar-se ao gozo das sensações imediatas. Este caráter embriagador do gozo conquistado transgredindo o interdito o premuniu contra os excessos e o contra-senso de uma visão que reduzia o cristianismo a uma negação do terrestre, ao desprezo do finito e do corpo que tanto o fizera sofrer na infância. Sua crise estética o fez saborear o fruto proibido, mas também experimentar o caráter inextinguível da sede que atravessava o espírito que se entrega apenas ao finito. Compreendeu o caráter falacioso deste desejo hiperbólico do mal infinito do desejo: em sua busca erótica, Dom Juan confunde o qualitativo, o amor e o quantitativo, a soma das conquistas femininas.  A caçada compulsiva do colecionador que se dispersa na multiplicidade, em uma série cuja infinitude é por definição inacessível, é de uma ordem totalmente outra daquela do amor que unifica, cujo poder de síntese está ligado ao absoluto que faz tocar (Cf. Farago, 2006. p. 121).                        

Assim sendo, o esteta kiekrgaardiano vive de momentos voltado ao prazer, paixões e desilusões. “O esteta vive de sensações, a cada sensação há um desespero. Vive, pois, no vazio, no constante. O que sobra para quem vive nessa perpétua angustia causada pelo temor de perder sempre o que não quer perder? O esteta é um homem desesperado, quer saiba ele ou não disso. E a solução de seu desespero está em desesperar até a última gota[12]. A solução do seu desespero está em levar o extremo o seu próprio desespero. O único conselho que se deve dar a um esteta é justamente isso: que ele desespere até não poder mais” (Kierkegaard, 2002, p.94).     

O esteta nada mais do que um sujeito sem graça, é alguém desgraçado, é um indivíduo pobre miserável, vil desprezível, digno de dó e compaixão. É alguém de má sorte, desditoso, funesto. Vive do instante, de sonhos. Sonhos que levam apenas as mais doloridas ilusões, pois, é movido apenas por sensações que o seduzem, mas, ao mesmo tempo escapam continuamente do seu poder, além de tudo é um sofredor. É primordialmente um observador, e não alguém que faz ou age.

O estágio estético é definido como um estado de incapacidade, impotência espiritual, que leva o homem ao desespero, e conseqüentemente, ao pecado, tornando-se assim, uma pessoa hedonista, pois é no prazer que vai buscar a realização que lhe falta. “Kierkegaard procurou estabelecer os três estágios, desde a vida estética que é a do puro gozo, a vida ética, que é a subordinação ao dever e do triunfo da vontade até a vida religiosa, que é a autêntica, a dolorosa experiência do divino que se põe perante nós oculto e longínquo” (Cf.: Reali, p. 180-191.).

Sendo assim, o estágio estético é uma total desordem, pois o indivíduo ao escolher se angústia e a angústia pode levar o indivíduo a desesperar-se. “Portanto o esteta se acha assim condenado a duas atitudes aparentemente contraditórias, […]. Querendo tudo ao mesmo tempo, nada quer de fato, vagando em um labirinto onde o escolta e o segue o nada. “O herói medieval de Bergman que, no filme O sétimo selo, por jogar xadrez com a morte, acaba por ter relação dos segredos da vida, inspirado-se diretamente em Kierkegaard” (Cf. Farago, 2006. p. 123). O segredo da vida do esteta é o desespero. Portanto o esteta é apenas um caçador de sensações, escolhe e ao mesmo tempo, angustia-se e desespera-se em suas escolhas.  

2 – Estágio Ético:

Nesse estágio o indivíduo vive compromisso, com seriedade e honestidade, pois, pensa eticamente, e é capaz de construir um laço conjugal com o outro que superou a instabilidade da juventude e se formou uma família.

No casamento, o homem não é apenas responsável por si mesmo, mas o é também por outro e diante do outro. A família promove a superação do egocentrismo, da prisão narcísica do esteta. Implica a necessidade do relacionamento da importância do outro como um fim e não como o instrumento de um capricho, de uma “experiência sem amanhã”, o “brinquedo de um instante”. […] O amor conjugal tem de ser vivido como a permanência da primeira vez. (Kierkegaard 2006, p. 130).    

O protótipo desse estágio ou esfera ética é o marido fiel o cumpridor do dever, o responsável, o dedicado á família e ao trabalho. Aqui ocorre o passo decisivo que conduz ao caminho da salvação. “É necessário não só querer, mas amar tornar-se um eu mesmo, e isto implica cumprir humildemente o próprio dever no quadro do amor familiar conjugal, na fidelidade resgatada dia após dia, que o habito não enfraquece mais aprofunda”.   (Cf.: Kierkegaard, 2002, p.95). O estado ético é infinitamente superior ao estético. Nesse estágio o homem já não vai à caça de sensações ou experiências imediatas, mas ordena e coordena sua vida ao cumprimento do dever. A pessoa deixa seus gostos pessoais para adotar leis de moral[13] e de conduta universais.

A ética, por ser lei do geral favorece a tendência que habita em cada um a se perder na multidão, ameaça perverter tudo, inclusive a sua moral. Ela não seria capaz, por exemplo, de propiciar uma solução para os casos que comportam excepcional. Há, portanto, casos em que a ética é totalmente impotente, e casos até em que é absolutamente impossível achar uma regra de comportamento.

Eis por que Kierkegaard proclama a necessidade algumas vezes de uma suspensão teológica da ética. De fato, no Evangelho, aquilo que Kierkegaard designa como suspensão teológica da ética não é algo excepcional, mas a própria forma da ação moral real.

Todavia a ética não poderia ser “suspensa” a não ser quando alcançou a plenitude da sua mediada: a suspensão não é uma dispensa, nem mesmo uma derrogação não é uma dispensa, nem mesmo uma derrogação. É um além que não cancela um só iota à exigência do geral. Mas aquilo que o religioso exige, além do ético ou, em todo o caso, conjuntamente com ele na maioria das vezes, é um ato que ultrapassa o estrito mandamento da lei rumo à gratuidade e ao caráter incondicional do amor (cf. as muitas transgressões de Jesus). Kierkegaard também coincide com este outro gigante do pensamento que foi Pascal:  “A verdadeira moral zomba da moral”. Mas Nietzsche também, sem duvida: “o que se faz por amor não é moral, mas religioso” (Cf. Farago, 2006. p. 126).

  

A questão existencial mais urgente em Kierkegaard é como viver como cristão. Em Temor e Tremor, ele analisa o esforço de Abraão em obedecer a ordem incompreensível de Deus de matar seu próprio filho e compara a dor que ele teve ao renunciar Regina com a dor do personagem bíblico[14].

Baseado numa reflexão dessa narrativa bíblica, ele se pergunta: “Será que existe algo com suspensão Teológica do que é ético?”. Em outras palavras, pode o ético ser suspenso temporariamente por causa de um poder maior? A resposta é: sim (Cf. Farago, 2005, p. 126). Desde que esse poder maior seja a impulsionado por um desejo ardente de obedecer a Deus, mesmo que esse desejo de obedecer traga graves conseqüências, pois como disse Jesus: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (Bíblia Sagrada, 1988.  Jo. 14,15).

A lei ética é universal. Por isso, a esfera ética contempla ainda um grau de universalidade porque a ética tem um telos universal, tem um fim, um objetivo universal. Ora, o cumprimento universal do dever não resolve problema da singuralidade e individualidade de cada homem. Portanto, todo o agir ético traz dentro de si um pecado de excluir o indivíduo; nasce então o arrependimento porque estando dentro da universalidade há no próprio agir ético uma reclamação de individualidade. Surge aqui, segundo Kierkegaard, um conflito que conduz o homem à angústia. Esse é o caso de Abraão que recebe de Deus a ordem de sacrificar Isaac,[15] tema apaixonado do Diário e núcleo da excepcional obra lírico-dialética ‘Temor e Tremor’.

O estágio ético não é definitivo, mas um instrumento onde cada indivíduo descubra o modo de como quer viver. O estágio religioso que veremos a seguir, não pode ser alcançado meramente só pela razão. É preciso que o indivíduo assuma um compromisso radical. Esse compromisso, Kierkegaard chamou de o “salto de fé”. Deste modo, o indivíduo poderá abandonar-se inteiramente nos braços de Deus. Um Deus, que só pode ser conhecido, não filosoficamente, mas sim através do amor. “Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (Jo 4, 8). Portanto Deus é o sujeito supremo do amor.

3 – Estágio Religioso:

Este estágio é o da fé, o do risco e o dá incerteza. Em termos kierkegaardianos: a fé é um salto no escuro. Neste estágio o homem se relaciona diretamente com o Absoluto. O Absoluto é o único que realmente conta. Aqui o homem se coloca ante Deus. “A medida do eu é aquilo ante o qual o eu é o que é”.  (Cf.: Colomer, 1990. p. 68).

No estágio ético como vimos acima, a medida é o próprio eu, é a própria razão; no estado religioso a medida é outra, onde tudo perde seu limite, se infinitiza. O estágio religioso pode cultivar duas religiosidades: um está fundamentado na religião natural, na qual se dá uma relação do indivíduo com o seu mundo e fundo existencial interiores. A outra religiosidade dá-se mediante uma relação com a historicidade de um Deus sofredor e morrente. Esta última coincide com a fé cristã, totalmente inusitada e paradoxal. O estado religioso é o âmbito da vivência na eternidade.

Somente o estágio religioso realiza a presença da eternidade no tempo, a plenitude da encarnação. Dissipam-se as margens do gozo, a prisão da lei abre suas grandes em proveito da gratuidade do amor e a pessoa realiza em plenitude a aliança entre o tempo e a eternidade. O Post Scriptum às Migalhas Filosóficas descreve e justifica o estado religioso, que corresponde à vocação cristã propriamente dita. […] Apenas o estado religioso permite ao homem, muito além do prazer, muito acima da lenta felicidade do dia-a-dia, conhecer a visita perturbadora da alegria, pela qual Kierkegaard faz uma magnífica ação de graças em A Doença Mortal: “Eis o motivo pelo qual diz ele: minha voz se elevará de júbilo, mais forte que o grito da alegria dos anjos por um pecador que se arrepende, mais alegre que o canto dos pássaros ao raiar do dia; pois o que eu procurei achei; e mesmo que os homens me arrebatassem tudo, mesmo que me excluíssem de sua sociedade, eu conversaria mesmo assim esta alegria; ainda que me tomassem tudo de volta, conservaria sempre a melhor parte, o espanto repleto de felicidade que nos trazem o amor infinito de Deus e a sabedoria dos seus desígnios” (Farago, 2006. p. 127). 

Portanto, o estágio religioso é o maior de todos, somente ele é capaz de realizar no indivíduo um verdadeiro plano espiritual, levando cada um e de modo particular reconhecer a sua limitação existencial. 

Kierkegaard diz que começou por um singular contra-senso, no ponto em que termina alguns em cada geração: a maioria, aqueles que que conhecem apenas em sua vida os momentos de síntese do corpo e da alma, não chegam jamais à determinaçao que é o espirito […]. Nada me é mais deconhecido nem estranho do que esta melancolia aspiraçao pela infância e juventude […]. Sinto aumentar minha felicidade cada dia que envelheço, embora só me encha de felicidade da eternidade, pois a temporalidade não é e nem será nunca o elemento do espírito, mas em certo sentido ou sofrimento. Esta dor de não ter tido infância “se atenua, totavia, já aos quarenta anos e se apaga na eternidade”. O sacríficio da imediatidade ao qual seu pai  destinou o filho desde a mais terna idade, inverteu os estágios no caminho da vida. Teve  de começar pelo estágio religioso, refratado ainda por cima pela angustia e a expiaçao do pai […]. Esta estrutura envertida e intensiva se precebe em todos os níveis de sua vida. (Cf.: Farago, 2006. pp. 140-141).

Nessa concepçao Kierkegaard aponta os  estágios como uma gategoria existencial do humano. Porém o estado adulto e defenitivo do indivíduo neste mundo é o  religioso, ou seja, o estado em que o homem vive à merce de sua vontade, nem das vontades estéticas e nem das leis éticas, mas tem sua vontade identificada com a vontade do Absoluto. Deste modo, o estagio religioso é o modo de vida em que o indivíduo o ‘único’ se comunica com o ‘Único’, tal comunicação é a contemplação suprema do homem, ou seja, é o homem só diante de Deus, o ‘Absoluto’.

4 – O salto da fé:

A passagem de um estágio para o outro se dá através do desespero e da angústia, o homem é obrigado a escolher, se não escolhe ficará numa descepção sem fim. Acarretando uma vida totalmente desenfreada e melancólica . Deste modo, a profunda desesperação e a angústia são caminhos para que o homem possa se dar conta de sua situação existencial, ou seja, é o saltar para um estágio superior, que vem a ser, o estágio ‘ético’. A passagem do ético para o religioso se dá através da fé e solidão. O indivíduo tem plena cosciência de que não é mais força e razão que conta e sim a entrega total de um firme fundamento das coisas que não se vê, a fé. Seria impossível para o homem saltar do estágio estético para o estágio religioso, pois, quando o esteta resolve mudar de vida e até mesmo querer pular para o estágio religioso ele já esta no estágio ético. Os seus pensamentos implicam uma certa moral e conduta ética. Por isso, que no estágio religioso a única coisa que conta é a fé na solidão com o Absoluto.

A influência da religião na vida de Sören Kierkegaard ficará assente em sua obra.  Desde o início, ele deixa claro que se trata de um autor religioso.  Neste sentido, a obra Tremor e Temor torna-se o ponto culminante no mundo religioso de Kierkegaard. Nessa linha de pensamento, seu objetivo é mostrar através do sacrifício de Abraão que o estágio ético não é absoluto[16], pelo contrário fica até ofuscado diante de exigências superiores do estágio religioso. Kierkegaard então argumenta que Abraão não hesitou em sacrificar Isaac[17] e que este desprendimento foi exatamente o motivo pelo qual seu filho veio a ser restituído.  Será que semelhante renuncia feita por Kierkegaard em relação à noiva no passado pudesse a trazer de volta então?[18] A resposta a este questionamento só seria possível se Kierkegaard se elevasse ao plano da fé como o fez Abraão.  Desta forma, percebe-se que o estágio religioso é marcado pelo subjetivismo.

Como apelo à subjetividade profunda, o estágio religioso pratica uma devoção ao Deus invisível que comunica-se através do silêncio que provém desta relação. Isto nos faz perceber que os dois primeiros estágios são mais populares do que o terceiro.  Kierkegaard entendia que os estágios estéticos e éticos não podiam existir sem o estágio religioso.  Em outras palavras, o religioso estava presente tanto no estético quanto no ético[19].  O religioso é um estágio conseqüente, pois é a partir da desordem dos estágios inferiores que se tem a possibilidade de encontrar a realidade superior da vida religiosa.

Entretanto, apesar da vida religiosa ser conseqüência dos dois primeiros estágios, requer-se por ela uma decisão.  Kierkegaard entende que teve que fazer uma escolha, muito clara, pela vida religiosa.  Entre as várias vocações que estavam diante de si, ele escolheu a vida religiosa, que para o filósofo torna-se a forma de vida mais difícil, entre outras coisas, por ser marcada pela solidão e pelo olhar atento de Deus. 

Nesta sua escolha pela vida religiosa solitária, Kierkegaard foi conduzido a uma crise com os oficiais da Igreja Luterana.  O filósofo compreendeu que acontecia em seu tempo a descristianização do mundo.  Sua luta solitária, contra pastores e bispos oficiais preocupados com suas carreiras eclesiásticas, aumentará o seu sofrimento e o fará alvo das chacotas populares, aumentando, a cada dia, a sua solidão.

A fé a solidão e o sofrimento tornam-se o centro da meditação de Kierkegaard.  Na definição desses aspectos, o filósofo desenvolve o sentido da subjetividade e da existência que vem do seu interior.  Na luta contra o luteranismo oficial, desenvolve um sistema religioso doloroso que se diferencia em muito da religião que se praticava.  O hegelianismo, que outrora o influenciou, é agora alvo de duras críticas dirigidas por Kierkegaard.  Ele não aceitava a aproximação da Igreja com o romantismo de Hegel.  Kierkegaard aponta para o erro imbecil no âmbito religioso, segundo ele não havia qualquer compatibilidade entre o cristianismo como um momento histórico que se devia ultrapassar, conforme o pensamento dos romancistas. Nessa concepção, o cristianismo para Kierkegaard não pode ser considerado apenas como um acontecimento histórico.

O pensamento de Kierkegaard baseia-se em sua cultura incomum e nos complexos sentimentais profundos.  Através de si e de seus problemas quer encontrar uma explicação para a sua existência. Mas não bastava para analisar o conteúdo da consciência para se encontrar aí uma filosofia da existência. Tem-se, também, que ter idéias.  E entre as idéias, tem que se estabelecer uma dialética.  E é através desta dialética que Kierkegaard percebe os estágios da existência: estágio estético, estágio ético e estágio religioso.

Kierkegaard foi um profundo conhecedor de obras clássicas. Entre as fontes que o influenciava estava: as belas-artes, a filosofia clássica e moderna, a teologia, etc. Pode-se perceber na obra de Kierkegaard um pensamento reflexivo bastante abrangente, fruto desta sua diversidade de fontes. Toda esta abrangência tem o objetivo de confrontar as idéias, os fatos, as experiências à luz do cristianismo que, para ele, é uma consciência moderna. Portanto, a critica de Kierkegaard era contra a modernidade,

5 – Conclusão:

Dentro do contexto apresentado vem a ser observado o grande tópico que representa os três estágios: estético, ético, e religioso. Kierkegaard aponta os estágios como uma categoria existencial do humano. O estado adulto e definitivo do indivíduo neste mundo é o estágio religioso, ou seja, o estágio que o homem vive à mercê de sua vontade identificada com a vontade do Absoluto. Deste modo, o estágio religioso é o modo de vida em que o indivíduo o ‘único’ se comunica com o ‘Único’, tal comunicação é a contemplação suprema do homem, ou seja, é o homem só diante de Deus, o ‘Absoluto’.

A filosofia de Kierkegaard não é outra coisa senão ele mesmo, enquanto indivíduo e possuidor de condições de existência. Segundo Kierkegaard, o indivíduo atravessa três estágios ou esfera ao ir em busca de sua total realização: estágio estético, que estando presentes as necessidades instantâneas e a impossibilidade de realizá-las, acabam por trazer devido a isso a sensação de incompletude. Neste estágio é fundamental considerar o desejo. O estágio ético baseia-se em um ideal comunitário em torno de formas definidas, onde o indivíduo procura um lugar dentro da vida social.

Kierkegaard aponta a aflição extrema do homem ao deparar-se com o vazio que não é preenchido nem pelos prazeres estéticos, nem pelas obrigações éticas. Há, por último, o estágio religioso, onde o indivíduo consegue se colocar diante do Absoluto, de Deus. Neste estágio é possível uma reflexão frente à existência, pois o homem revê os valores encontrados nos estágios anteriores, os redirecionado a algo de maior importância que é este encontro com Deus. Valoriza ainda a possibilidade de escolha que pertence ao homem, encontrando nesta o núcleo da existência humana, descartando a possibilidade de razões lógicas que interfiram nas escolhas durante o curso de sua vida. A opção, enquanto possibilidade para todos os homens, é o que traz este caráter de um indivíduo existencial, enquanto vivente de uma existência autêntica.

Portanto,Kierkegaard foi o ‘indivíduo’ que lutou pela verdade, buscou a verdade até encontrá-la. Em seus quarenta e dois anos de vida mostrou-se profundamente apaixonado, irônico e religioso. Percebe-se isto em seus escritos, o verdadeiro sentido existencial de sua vida. Kierkegaard, com certeza é o precursor de uma nova filosofia. Lembra ainda que o homem que, não é somente um ser pensante, mas é um indivíduo que chora, sofre, escolhe, angustia-se e desespera-se. É o existencialismo, corrente filosófica na qual Kierkegaard se identifica profundamente.

Partindo da concepção kierkegaardiana em profunda relação com os três estágios ou esferas da existência humana podemos fazer um questiomento provocador. Já parou para pensar e analisar qual estágio ou esfera que você se encontra?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Ave Maria, 1988.

COLOMER, Eusebi. El pensamiento alemán de Kant a Heidegger. El postidealismo: Kierkegaard Feuerbach, Marx, Nietzsch, Dilthei, Husserl, Scheler, Heidegger. Barcelona: Editorial Herder, 1990. v.3.

FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. Tradução de Ephraim F. Alves. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 121.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia. Romance da História da Filosofia. Editora Schwarcz Ltda. São Paulo, 1995.

.”. (Jolivet, 1957, p. 45-46).     

JUNIOR, Eder Morais. Angustia: Condição fundamental para a autêntica existência humana, na perspectiva de Sören Kierkegaard. 2007. Monografia (Graduação em Filosofia) – Faculdade Palotina, Santa Maria, RS. 

KIERKEGAARD, Soren. Ponto de Vista Explicativo de Minha Obra como Escritor. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 2002.

______________. Temor e Tremor. 3. ed. Tradução de Maria José Marinho. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

REALE, Miguel. Kierkegaard, o seu e o nosso tempo. Revista comemorativa do primeiro centenário de Kierkegaard. São Paulo, 1945.

REICHMAN, Ernani (Org). Sören Kierkegaard \ textos selecionados por Ernani Reichman. Curitiba: Editora Universidade Federal do Paraná. 1978, p. 19.

SECCO, Frederico Schwerin. O conhecimento essencial segundo Kierkegaard. v, 14 n. 5. Goiânia: Fragmentos de Cultura. maio 2004.pp. 925-941.

 



[1] Acadêmico do Curso de Filosofia da Fapas.
[2] Professor do Curso de Filosofia da Fapas e orientador.
[3] A questão é compreender o que se entende por etapas ou esferas. Em primeiro lugar, deve-se evitar compreendê-las como uma estrutura linear e temporal, uma visão de progresso que levaria necessariamente de uma etapa a outra, seja pela vida da edificação seja pela vida da perdição. Essas esferas não estão afastadas umas das outras, no sentido de que poderíamos avançar de uma etapa para outra. As etapas ou esferas se interpenetram, confundem-se na existência, não possuindo linhas demarcatórias ou pontos específicos banalizando seus limites. Falar em esfera da existência é apontar o ponto de vista, o horizonte, a preocupação pelo qual se examina e se quer participar na existência. Na medida em que Há faculdade e necessidades estéticas, éticas e religiosas na existência humana, não se pode conceber o abandono puro e simples de uma ou duas dessas faculdades para nos enclausurarmos em uma esfera a despeito de todo o resto. Trata-se de antes de privilegiar um desses aspectos e de relacioná-lo com o todo com base nessa decisão. (Cf.: Secco, 2004. p. 925-941).                
[4] Neste sentido, pode-se complementar com Jolivet: “O existencialismo para kierkegaard, é apenas expressão da sua própria vida e a única coisa de geral ou de universal que contém é a exortação que todos nos dirige para que nos tornemos cristão. A natureza deste existencialismo só poderá, portanto, ser definida em função das condições que são requeridas por um existir autêntico. Existir que deverá iniciar, e intensificar seguidamente, por meio de uma reflexão capaz de fazer, de uma existência vivida, uma existência desejada e pensada, de um pensamento em acto pensado. Essas condições podem reduzir-se a três: a necessidade do compromisso e do risco, o primado da subjetividade e a prova da angústia e do desespero.”. (Jolivet, 1957, p. 45-46).     
[5] Quanto a esse aspecto, sugere-se a leitura de Moraes, 2007.
[6] Kierkegaard estava noivo da jovem Regina Olsen, contudo, não se achava digno de assumir uma vida matrimonial. Desde então renunciou (sacrificou) o matrimônio. Preferindo viver uma vida de solidão.
[7] Kierkegaard foi um critico ferrenho, não somente da filosofia hegeliana como vimos acima, mas também da filosofia de Descartes, ou seja, ao cogito cartesiano. Considera um desafio filosófico o anuncio do cogito ergo sum. Kierkegaard opõe-se a este enunciado um outro: mais eu penso, menos eu sou. Isto quer dizer que párea o existencialista dinamarquês a existência vivida é muito mais rica que a existência pensada.
[8] Don Juan é um lendário libertino fictício, de uma história contada muitas vezes por autores diferentes. O nome às vezes é figurativamente usado como um sinônimo para sedutor. Fausto é considerado o símbolo da modernidade cultural. É um poema de proporções épicas que relata a tragédia do Dr. Fausto, homem da ciência que, desiludido com o conhecimento de seu tempo, faz um pacto com o demônio, que lhe enche com energia satânica insufladora da paixão e pelo progresso. O Judeu Errante é um personagem mítico. Entre várias lendas a seu respeito, conta-se que Cristo estava carregando a cruz até o monte calvário e, ao passar em frente a sapataria que o Judeu Errante (Ahsuerus) trabalhava, Cristo caiu, e foi alvo de chacotas e insultado por Ahnsuerus. Conta-se que Cristo o amaldiçoou condenado Ahnsuerus a vagar pelo mundo até a sua volta.
[9] O pai de Kierkegaard, Miguel Pedersen Kierkegaard, em razão das terríveis condições de trabalho vividas na adolescência, um dia, não suportando a angústia e a melancolia, amaldiçoou solenemente Deus. Posteriormente, aquela proferida maldição feita na adolescência, ele a guardou para sempre na memória e nos sentimentos de culpa e a perseguição escrupulosa que lhe adivinham na velhice. Kierkegaard logo descobriu a blasfêmia de seu pai contra da Deus, desde então passou a ter uma vida atormentada, pois achava que Deus tinha castigado toda sua família.           
[10] Neste sentido, Eusebi Colomer é sumamente ilustrativo ao afirmar que: “Confesó a Sören que siendo un muchacho, e, Jultlandia, uma vez había alzado el puño blasfemando contra Dios y que esto, unido a su desliz sexual, había pesado sobre su consciência toda la ultima parte de su vida”. (Cf.: Colomer, 1990. v.3. p. 30 ).
[11]  Desanimado Kierkegaard rejeitou a vida de burguês que o pai lhe havia preparado e que o seu irmão mais velho, o pastor Peter, abraçou. Misturou-se aos jovens de seu tempo e entregou-se a uma vida de libertinagem. Ele, porém não herdou apenas a melancolia do pai. Herdou também o sentimento de culpa e ansiedade religiosa pietista escrupulosas. Entretanto recebeu como legado o talento para a argumentação criativa.
[12] Na obra intitulada Diapsalmata, Kierkegaard afirma que: “La vida se me há convertido em uma bebida amarga. Sin embargo, tengo que beberla gota a gota, lentamente, contando” (Cf. Kierkegaard 1961, p. 33).
[13] A moral que assegura uma sabedoria feita de bom senso e de medida é o bastante, afirma-se, para a solução dos problemas ordinários da vida, para o “geral”. Mas comporta igualmente o perigo de fazer o homem esquecer que ele é e deve ser um indivíduo singular, submetido a deveres pessoais e revestido de uma responsabilidade própria e inalienável. (Farago, 2006. p. 125).   
[14] Kierkegaard fixara o olhar muito alto para o casal que pretendia ter edificado com “sua Regina”. Quisera colocar Regina fora, ou melhor, acima do amor humano, a fim de poder entrar em comunhão com ela em um amor  que desse frutos. Pretendera arranca-lá do ‘geral’, do personagem estereotipado da ‘noiva’ da ‘esposa’, da ‘mãe’. Mas em assim fazendo, não quis de modo algum sacrifica-la, mas procurou sacrificar o amor humano ao divino, a fim de livrar Regina do arquétipo da mulher idolatrada e de erguê-la em nível de criatura feita, não mais esteticamente, mas fundamental e religiosamente à imagem de Deus” (Farago, 2006, p. 143). Kierkegaard fala do “anjo que, com sua espada flamejante”, se interpôs entre eles (Kierkegaard e Regina Olsen). Além da dor imediata de ter que renunciar a bem amada e, por isso mesmo, sacrificar qualquer outra felicidade temporal, havia ainda a dor de ele mesmo ter que empunhar a faca entre ele e Regina Olsen.     
[15] Aqui se faz necessário citar a passagem mencionada, para aqueles que a desconhecem: “Deus provou Abraão, e disse-lhe: ‘Abraão!’ – ‘Eis-me aqui’, respondeu ele. Deus disse: ‘Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac; e vai à terra de Moriá, onde tu o ofereceras em holocausto sobre um dos montes que eu te indicar’. No dia seguinte pela manha, Abraão selou seu jumento. Tomou consigo dois servos e Isaac, seu filho, e, tendo cortado a lenha para o holocausto, partiu para o lugar que Deus tinha indicado. Ao terceiro dia, levantando os olhos, viu o lugar de longe. ‘ficai aqui com o jumento’, disse ele aos servos; ‘eu e o menino vamos até lá mais adiante para adorar, e depois voltaremos a vós’. Abraão tomou a lenha do holocausto e pôs aos ombros de seu filho Isaac, levando ele mesmo nas mãos o fogo e a faca. E, enquanto os dois iam caminhando juntos, Isaac disse ao seu pai: ‘Meu pai!’ – ‘ Quem há meu filho?’  Isaac continuou: ‘Temos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a ovelha para o holocausto?’ ‘Deus, respondeu-lhe Abraão, providenciará ele mesmo uma ovelha para o holocausto, meu filho’. E ambos, juntos continuaram o seu caminho. Quando chegaram ao lugar indicado por Deus, Abraão edificou um altar; colocou nele a lenha, e amarrou Isaac, seu filho’. E o pôs sobre o altar dm cima da lenha. Depois, estendendo a mão , tomou a faca para imolar seu filho. O anjo do Senhor, porém, gritou-lhe do céu: ‘Abraão! Abraão!’ – ‘Eis-me aqui!’ – Não estenda tua mão contra o menino, e não lhe faças nada. Agora eu sei que temes a Deus, pois não me recusaste o teu próprio filho, teu único filho’ . Abraão levantando os olhos, viu atrás dele um cordeiro preso pelos chifres entre os espinhos; e, tomando-o, ofereceu em holocausto em lugar de seu filho. Abraão chamou a este lugar Javé-yiré, de onde se diz até hoje:’ Sobre o monte de Javé-yiré'”(bíblia Sagrada, 1988. Gênesis 22, 1-4).     
[16] A este respeito, pode-se afirmar que a História de Abraão comporta uma suspensão teleológica da moral. Como o Indivíduo, superou o geral. Tal é o paradoxo que se recusa à mediação. Não se pode explicar nem como aí entra nem como aí permanece. Se não é este o caso de Abraão, nem sequer este alcança ser herói trágico, é um assino. E então é tolice persistir em chamar-lhe o pai da fé, e conversar a seu respeito com pessoas desejosas de ouvir mais que palavras. O homem pode chegar a ser um herói trágico, pelas suas próprias forças, mas não um cavaleiro da fé. Quando um homem se embrenha no caminho, penoso em um sentido, do herói trágico, muitos devem estar em condições de o aconselhar; mas aquele que se segue a estreita senda da fé, ninguém pode ajudar, ninguém pode compreender. A fé é um milagre; no entanto ninguém dela está excluído; porque é na paixão que toda a vida humana encontra sua unidade, e a fé é uma paixão. (Cf.  Kierkegaard, 1988, p. 149).
[17] Abraão conservou o olhar obstinadamente fixo no solo até o quarto dia. (O dia do sacrifício). Só então levantou os olhos e vendo o horizonte da montanha de Moriá, baixou-os de novo Em silencio preparou o holocausto e ligou Isaac; em silencio puxou a faca.   (Cf. Kierkegaard, 1988, p. 114).
[18] Esta é a coragem da fé: Abraão não perdeu Isaac pela fé, mas o obteve pela fé. Aqui está um testemunho direto de Kierkegaard sobre si mesmo; ele “experimentou” a ausência da fé como uma impotência. Mas, no plano da eternidade, considerou-se ligado a Regina até o ultimo suspiro.
[19] Longe de limitar as categorias de estético, ético e religioso a estágios, que se eliminam reciprocamente à medida que cada um vai progredindo, ele os toma como uma característica de esferas existenciais que se subordinam umas às outras, sem abolir o que cada uma comporta de positivo, de expressivo da verdadeira vida. (Cf. Farago, 2006, p. 129).