Identificação da Obra
Autor: Leon Tolstoy (ou Liev Tolstói)
Título completo: O Reino de Deus Está em Vós
Ano de publicação original: 1894 (em russo)
Edição analisada: 2ª edição, tradução de Ceuna Portocarrero
Editora: Rosa dos Tempos
Ano da edição analisada: 1994
Introdução Contextual: O Reino de Deus Está em Vós – Leon Tolstoy
Leon Tolstoy (1828-1910) é um dos grandes nomes da literatura mundial, reconhecido principalmente pelos romances épicos Guerra e Paz (1868) e Ana Karenina (1875). Porém, a obra que analisamos representa uma transformação radical na trajetória deste gigante intelectual.
Aos cinquenta anos, Tolstoy vivenciou uma crise espiritual profunda, documentada em seu livro autobiográfico Minha Confissão (1882). Cansado do sucesso literário mundano, o escritor buscou a verdadeira fé não entre filósofos ou teólogos, mas junto ao povo pobre russo, onde compreendeu que a religião cristã não era questão acadêmica, mas imperativo vital de existência.

O Reino de Deus Está em Vós representa a síntese de sua transformação intelectual e espiritual, concluído entre 1890 e 1893, precisamente quando Tolstoy atingia a maturidade intelectual aos 65 anos.
A obra custou-lhe três anos de trabalho árduo, período em que simultaneamente organizava refeitórios populares para auxiliar os pobres durante a terrível crise russa de 1891.
Este é um escritor não apenas teórico, mas profundamente comprometido com os humildes.
O contexto histórico é crucial para compreender a obra. Escrita no final do século XIX, em plena Rússia czarista, a obra emerge num momento em que o militarismo europeu se intensificava, as potências se armavam vertiginosamente, e os conflitos diplomáticos cresciam. É neste cenário de crescente belicismo que Tolstoy constrói uma argumentação filosófica e teológica contra a violência estatal.
Sua profecia não foi vã: o texto prevê, com precisão assustadora, os horrores da Primeira Guerra Mundial, que irromperia apenas duas décadas depois.
A obra é destinada a um público amplo, mas particularmente a cristãos que enfrentam dilemas éticos com o Estado, bem como a pensadores preocupados com questões sociais e morais. Não é um texto meramente acadêmico, mas uma provocação profética que desafia crenças enraizadas sobre poder, autoridade e justiça.
Estrutura Geral do Texto
O livro organiza-se em doze capítulos temáticos, complementados por apresentação de Fr. Clodovis Boff, cronologia biográfica de Tolstoy e um denso apêndice com correspondências e documentos históricos.
A estrutura não é propriamente narrativa, mas argumentativa e progressiva: cada capítulo desenvolve e aprofunda a tese central, refutando objeções e expandindo implicações.
Os capítulos progridem logicamente: começam pela doutrina da não-resistência ao mal (a doutrina sugere a vitória do bem sobre o mal através do amor e da graça, como ensinado em Romanos 12:20-21) nos primeiros séculos do cristianismo, passam por análises de como essa doutrina foi malcompreendida por fiéis e cientistas, expõem as contradições entre consciência cristã e vida prática moderna, e culminam numa conclusão exortativa.
O texto intercala argumentação teórica com exemplos concretos, documentos históricos (como o Catecismo da Não-Resistência de Adin Ballou) e análise crítica de eventos contemporâneos. Esta estratégia torna a leitura simultaneamente acessível e profundamente desafiadora.
Resumo e Análise
O Argumento Central
A tese fundamental de Tolstoy é deceptivamente simples, porém radicalmente perturbadora: o preceito evangélico “Não resistais ao mal com a violência” (Mateus 5,39) deve ser compreendido literalmente e aplicado como lei universal, válida socialmente e não apenas individualmente.
Tolstoy não pede passividade diante do mal, mas rejeição categórica do princípio de “repelir violência com violência”. A verdadeira resistência ao mal, sustenta, ocorre através da bondade, mansidão, caridade e, fundamentalmente, através da não-cooperação e desobediência civil.
Este posicionamento não é peculiar apenas a Tolstoy. Como ele demonstra através de referências a Adin Ballou, Henry David Thoreau, os Quakers, os menonitas e pensadores medievais como Kheltchitsky, existe uma longa tradição cristã de rejeição à violência. Porém, esta tradição foi sistematicamente silenciada ou marginalizada pela hegemonia de igrejas institucionais que legitimaram o poder estatal e militar.
Crítica à Igreja Institucional no contexto em que vivia
Tolstoy lança uma acusação radical contra todas as igrejas estabelecidas—católica, ortodoxa, protestante—considerando-as instituições intrinsecamente anticristãs.
Sua crítica não é temperada: de modo geral, as igrejas, para ele, são “mentirosas por natureza”, cuja função não é revelar a doutrina de Cristo, mas ocultá-la. Seus rituais (velas, sinos, procissões, dogmas elaborados) funcionam como instrumentos de hipnose coletiva que adormecem a consciência popular.
Particularmente contundente é o desafio que Tolstoy lança às igrejas: escolham entre o Sermão da Montanha e o Símbolo de Niceia, entre o Evangelho vivo e os dogmas abstratos.
A obra argumenta que as igrejas corromperam-se desde Constantino, quando o cristianismo foi incorporado ao poder imperial romano, transformando-se de religião de libertação em instrumento de controle estatal. Desde então, igrejas e Estado unificaram-se no projeto de subjugação popular.
Esta crítica, embora contundente, tem seu limite intelectual. Como observa a apresentação de Boff, se as igrejas são “anticristãs por natureza”, não haveria razão para escolher entre alternativas, sua dissolução seria consequência lógica.
Além disso, ao sugerir que o povo abandone o sistema simbólico cristão que o nutre e consola, Tolstoy não considera adequadamente a ambiguidade de toda representação simbólica: símbolos podem tanto alienar quanto emancipar, conforme o contexto.
O Antiestatismo Radical
Paralelamente à crítica eclesial, Tolstoy desenvolve uma condenação sistemática do Estado moderno. Não apenas do Estado autocrático (como o czarista), mas de todo Estado, inclusive democráticos. Para Tolstoy, o Estado é “violência encarnada”, fundamentado no exército, polícia, tribunais e prisões—todas instituições que exercem coerção através de ameaça letal.
Particularmente virulentos são seus ataques ao serviço militar obrigatório, que denomina “preparação para o assassinato”. Ao obrigar cidadãos a portar armas e matar compatriotas em nome do Estado, o serviço militar não apenas viola o mandamento cristão de não matar, mas também representa “forma especiosa de autotirania”, povo armado contra povo. Tolstoy era antimilitarista absoluto, reconhecendo que o Estado mantém exércitos não para defesa externa (pretexto), mas para subjugar o próprio povo.
A saída que Tolstoy propõe não é revolução violenta (que ele rejeitava como ineficaz e reprodutora de opressão), mas desobediência civil pacífica e sistemática: recusa de participação política, negação de impostos (quando possível), não-colaboração com sistemas judiciários e militares. Nisto se aproxima claramente de Henry David Thoreau e suas proposições sobre desobediência civil.
Sua visão é parcialmente utópica. Tolstoy deposita fé na “consciência moral coletiva” (opinião pública) como força transformadora capaz de substituir o Estado. Para sociedades contemporâneas complexas, tal posição levanta questões realistas sobre como coordenação, justiça e ordem poderiam funcionar sem alguma forma de autoridade central. Contudo, o “núcleo positivo” de sua provocação profética permanece válido: não seria desejável que Estados minimizassem suas funções coercivas e se reduzissem a administrações meramente técnicas?
Síntese de Ideias Principais
A obra desenvolve uma visão integrada onde cristianismo autêntico, não-violência, liberdade humana e transformação social formam totalidade indissociável. O cristianismo não é doutrina mística abstrata, mas “moral nova” vivenciada praticamente. A religião é “profecia” no sentido de antecipar trajectórias históricas—o profeta vê adiante e convida a humanidade a segui-lo.
Tolstoy critica tanto conservadores quanto os progressistas de sua época. Aos primeiros, pelas justificativas de opressão; aos segundos, por acreditarem que transformação social externa é possível sem transformação moral interna prévia. Sobre os progressistas revolucionários, argumenta, querem mudar a sociedade sem se mudarem a si mesmos, perpetuando ciclos viciosos de violência e contra-violência.
Centralmente, Tolstoy sustenta que o progresso humano resulta não de violência (frequentemente caracterizada como “parteira da história”), mas do amadurecimento da consciência moral. A violência, longe de libertar, perpetua alienação e impede compreensão da verdade cristã. Conhecimento da verdade associado à vivência prática dessa verdade é o caminho tolstoiano para emancipação.
Citações Diretas que achei pertinetes
Selecionei poucas citações diretas essenciais, mantendo fidedignidade ao texto original:
A doutrina fundamental da não-resistência é enunciada assim:
“Tolstoi não aceita a máxima jurídica comumente aceita vim vi repellere – repelir violência com violência. Esta jamais pode ser legitimada apelando para o direito de legítima defesa. Porque a violência sempre um mal, e não se pode responder ao mal com o mal.” (TOLSTOY, 1894, p. 7 da edição de 1994)
Sobre a consciência coletiva como motor de mudança:
“A ação espiritual” é apresentada como força transformadora fundamental, pois “os homens sofrem com a opressão e lhes aconselhado procurar, para melhorar sua situação, métodos gerais que serão aplicados pelo poder ao qual devem continuar a se submeter.” (TOLSTOY, 1894, p. 102, tradução 1994)
Acerca da liberdade cristã: Na abertura do livro, Tolstoy cita Paulo:
“Não vos torneis servos dos homens” (1 Coríntios 7,23), estabelecendo a liberdade como “atributo inalienável e definitório do ser humano.” (TOLSTOY, 1894, p. 7)
Relações e Aproximações Teóricas
Tolstoy não trabalha isoladamente. A obra estabelece diálogos explícitos com múltiplas tradições filosóficas.
Com Marx:
O texto parafrasearia tese marxiana ao afirmar que “a fé não pode se contentar em interpretar o mundo, mas deve, isto sim, mudá-lo.” Para Tolstoy, como para Marx, prática transformadora é indissociável de teoria; porém, o caminho é radicalmente distinto, não revolução violenta, mas vivência cristã como práxis libertadora. Tese também defedida por Jesus (Mateus 22: 36-40) na maxima: “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”
Com Thoreau:
A “desobediência civil” de Henry David Thoreau é explicitamente reconhecida e valorizada. Tolstoy não combate diretamente o Estado (violência begets violência), mas subtrai-lhe o “tapete” sob os pés através de negação de cooperação e consentimento. O poder político, sustenta, alimenta-se primordialmente não da força bruta, mas do consenso e obediência.
Com Pensadores Cristãos Primitivos e Medievais:
Tolstoy resgata figuras esquecidas como Kheltchitsky (século XV), cujo A Rede da Fé profetiza ideias similares. Também cita os Quakers (duzentos anos de testemunho não-violento) e menonitas, resgatando genealogia cristã pacifista.
Com Teologia da Libertação:
Embora a Teologia da Libertação moderna não existisse quando Tolstoy escrevia, sua ênfase em articular fé e transformação social antecipa preocupações posteriores. Fr. Clodovis Boff, na apresentação, explora precisamente este diálogo, mostrando como Tolstoy articula “profecia e transformação social.”
Crítica à Modernidade
Tolstoy situa-se numa posição peculiar face à modernidade. Não rejeita progresso técnico ou científico, mas questiona sua orientação para fins destrutivos.
A ciência moderna, critica, concorre “para a obra da destruição” ao inventar “novos meios de matar grandes quantidades de homens.” É crítica profética que permanece notavelmente atual
A contradição que Tolstoy identifica na modernidade europeia é entre ideais professados (liberdade, igualdade, fraternidade, cristianismo) e práticas reais (militarismo crescente, imperialismo, exploração). Os homens modernos, argumenta, “detestam o regime que, entretanto, sustentam”—vivem em contradição estrutural entre consciência e ação.
Intenção Central da Obra
O Reino de Deus Está em Vós é, em sua essência, um texto profético que busca denunciar, provocar e convocar. Tolstoy não propõe sistema político alternativo detalhado, mas interpela leitores a reconhecerem contradição fundamental entre fé cristã proclamada e práticas cotidianas sustentadas.
Sua intenção é despertar consciência moral letárgica—”curar do ceticismo” conforme Gandhi descreveu sua própria leitura.
O livro quer ensinar cristianismo autêntico, entendido como vivência prática de não-violência, amor transformador e liberdade frente a poderes coercitivos. Simultânea e provocativamente, questiona fundamentos de sociedades modernas (Estado, Igreja, militarismo, capitalismo) como inerentemente violentos e anticristãos.
Contribuições Principais
Teórica: Tolstoy oferece interpretação coerente do cristianismo radicalmente distinta das hegemônicas. Sua leitura do Sermo da Montanha como imperativo prático (não simbólico ou exagerado) resgata tradição cristã pacifista marginalizada. A distinção entre “não-resistência” (comumente interpretada como passividade) e “não-resistência com violência” (resistência ativa através de meios não-violentos) é conceitualmente clarificadora.
Político: Ao articular crítica do Estado com fundamentação cristã, Tolstoy oferece fundação ética alternativa para pensamento libertário. Diferente de anarquismo violento de sua época, sua ética libertária radica-se em princípios de amor e consciência, não em destruição destrutiva.
Profético: A previsão tolstoiana de conflagração mundial que se concretizaria em 1914 demonstra perspicácia analítica rara. Seu diagnóstico sobre dinâmicas de militarismo europeu revelou-se profeticamente exato.
Influência Histórica: Gandhi, talvez maior figura não-violenta do século XX, declarou-se “curado do ceticismo” pela leitura de Tolstoy. Levou o livro à prisão, distribuiu-o a amigos. A influência sobre movimentos pacifistas modernos é inegável.
Questões para o Leitor Contemporâneo
A obra levanta interrogações que permanecem perturbadoramente atuais:
- Se a consciência individual reconhece imoralidade de certas ações (guerra, exploração, opressão), como justificar participação através de impostos, serviço militar ou funções estatais?
- É possível transformação social profunda sem transformação moral individual correspondente? Ou revoluções violentas simplesmente reproduzem opressão sob nova forma?
- Pode a opinião pública coletiva realmente funcionar como “poder” alternativo, ou necessitamos sempre de estruturas coercivas centralizadas?
- Como equilibrar necessidade de ordem social com imperativo de liberdade individual frente a poderes que se arrogam direito de matar em nome do bem comum?
Para contextos acadêmicos, a obra é inestimável para estudos em:
História Intelectual: Compreender formação do pensamento político do século XX
Teologia: Diálogos entre teologia cristã e ética política.
Filosofia Política: Genealogia do pensamento libertário e anarquista cristão
Estudos de Paz: História intelectual de movimentos pacifistas
Para contextos educativos e formativos, O Reino de Deus Está em Vós funciona como provocação ética que força confrontação entre princípios proclamados e práticas efetivas. Para comunidades religiosas, oferece oportunidade de reexaminar ortodoxias domesticadas.
Sua leitura não oferece respostas confortáveis, mas questões incômodas—precisamente o que profecia deve fazer.
Referências Bibliográficas
BALLOU, Adin. Catecismo da Não-Resistência. In: TOLSTOY, Leon. O Reino de Deus Está em Vós. 2. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994. [Apêndice]
BOFF, Clodovis. Apresentação. In: TOLSTOY, Leon. O Reino de Deus Está em Vós. 2. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994, p. 5-11.
KHELTCHITSKY. A Rede da Fé. Século XV. [Manuscrito citado e analisado em]
TOLSTOY, Leon. Minha Confissão. 1882.
TOLSTOY, Leon. O Reino de Deus Está em Vós. Tradução de Ceuna Portocarrero. 2. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994.
THOREAU, Henry David. Ensaios sobre desobediência civil. [Referenciado em Tolstoy]



