O UMBIGO DO SONHO: PSICANÁLISE E TEOLOGIA

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“O sono desembaraça a seda enredada das preocupações, é o bálsamo que alivia as dores do trabalho e o principal alimentador do festim da vida”.

Shakespeare

  A Ligação Entre Sonhos e Realidade Existencial

Desde os tempos remotos, a mitologia narra uma forte ligação entre os sonhos e a realidade existencial. Seja Édipo de Sófocles ou José no Egito, ambos têm em comum o sentido da existência narrado em seus sonhos. Édipo percebe-se como aquele que nasceu para ser marcado pela tragédia, dada a realidade de que seu destino era matar o pai, casar-se com a mãe e viver o tormento da culpa. No caso de José do Egito, a história escrita também descreve um jovem que teve seu destino selado por Deus, revelado ao seu pai. Apesar de ser um destino de sucesso político, José foi vendido para líderes de terras estrangeiras, viveu bons e maus momentos que o conduziram até seu destino: o de príncipe do Egito.

O caráter dos sonhos também foi objeto de estudos para a Filosofia, Teologia e Psicanálise. Freud (1856-1939) escreveu o clássico “A Interpretação dos Sonhos”, onde o sonho é compreendido como um espaço de realização dos desejos. Já Jung defende um conceito mais holístico, de que os sonhos são formas de compensação da psique, uma maneira de expressão do inconsciente. Quando se trata das representações oníricas, a psicanálise encara os sonhos como uma via para o conhecimento da mente. Freud elucida: “Os sonhos são a estrada real para o conhecimento da mente”. Outro ponto relevante é o aspecto místico; os sonhos parecem ter uma forte ligação com aquilo que transcende o próprio corpo, tornando-se uma manifestação do sagrado.

Sonhar, para os antigos, é vivenciar essa relação com o transcendente, ouvir a voz dos deuses e ver aquilo que no presente ainda não é, mas que se realizará, ainda que no campo espiritual. Na teologia, os sonhos são um espaço para a manifestação do sagrado, enquanto que, para a psicanálise freudiana, esse espaço é destinado ao desejo humano. Freud comentou em nota de rodapé o caso de Irma: “existe pelo menos um ponto em todo sonho ao qual ele é insondável – um umbigo, por assim dizer, que é seu ponto de contato com o desconhecido” (p. 145).

Jung e os Arquétipos

Jung acreditava que nos sonhos habitavam os arquétipos, conteúdos oníricos que continham verdades sobre o mundo e sua relação com o indivíduo. Os sonhos seriam um tipo de experiência epistemológica na qual o protagonista vivencia experiências que buscam elucidar os conteúdos do inconsciente, trazendo-os à consciência. Esse processo de conscientização do inconsciente tem como coadjuvante as figuras arquetípicas, principalmente aquelas que Jung enumera dentro da categoria Inconsciente Pessoal, como a sombra (aspectos negativos de nossa personalidade que se encontram reprimidos), animus (aspectos da figura masculina na mulher) e anima (imagem arquetípica da figura feminina no homem).

Em contraponto a Freud, Jung defendia que os sonhos auxiliam na construção da individuação do ser humano, ajudando a manter a saúde psíquica. Jung afirmou: “Nunca pude concordar com Freud que o sonho é uma ‘fachada’ atrás da qual seu significado se dissimula. Para mim, os sonhos são natureza, e não encerram a menor intenção de enganar; dizem o que podem dizer e tão bem quanto podem” (JUNG, 2002, p. 145). Sonhos refletem o inconsciente, ora para afirmar algum caráter da realidade que se quer negar, ora para comunicar uma verdade que deve ser compreendida. Fatos traumáticos mal resolvidos são facilmente observados em sonhos que fazem com que o indivíduo reviva o trauma de outras formas, dando a impressão de repetição.

Enquanto para Freud o sonho exerce a função de realização do desejo, Jung compreende o sonho como agente da individuação. Ao analisar o conteúdo de um pesadelo, é mais viável tomá-lo como parte de um processo de resolução de conflitos inconscientes do que como realização de um desejo, já que os pesadelos chegam ao ponto de quebrar o ritmo do sono. Na psicanálise freudiana, é fácil perceber um modelo topográfico (id, ego, superego). Entretanto, Jung não descreve o inconsciente como uma elaboração de mapa, mas como formas de percepção da realidade. O consciente e o inconsciente são características dos conteúdos psíquicos.

A Função Transcendente

Sobre a natureza da psique e sua relação com o transcendente, Jung declara: “A função psicológica transcendente resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes” (2000, p. 4). Jung trata de memórias e pensamentos conscientes e inconscientes que estabelecem a dinâmica psíquica. Em suma, Jung julgava que “o sonho é uma criação psíquica que, em contraste com os conteúdos habituais da consciência, se situa, ao que parece, pela sua forma e seu significado, à margem da continuidade do desenvolvimento dos conteúdos conscientes” (JUNG, 2000, p. 87). O sonho não é o resultado de uma continuidade lógica e emocional da experiência, mas o resíduo de uma atividade que se exerce durante o sono, isolando-o dos demais conteúdos da consciência

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS                                                                                               

FREUD, S. (1972). A interpretação dos sonhos (primeira parte) (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 4-5). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1900).

JUNG, Carl G. Memórias, Sonhos e Reflexões. 22ª Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

JUNG, Carl G. A Natureza da Psique. 5ª Edição. Petrópolis: Vozes. 2000.

ROUDINESCO E PLON. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.