.1.- Peter Berger e a questão da Teodicéia.
Para Peter Berger, assim como Pierre Bourdieu, a religião possuiria o caráter de legitimação da ordem social. Porém, diferente de Bourdieu, no qual a religião oculta o caráter de dominação social de uma classe sobre a outra
,para Berger a religião remeteria a um “cosmos” sobrenaturalizado, num processo de ocultamento, de “alienação”; ou seja, o não reconhecimento do caráter humano da criação da sociedade.
,para Berger a religião remeteria a um “cosmos” sobrenaturalizado, num processo de ocultamento, de “alienação”; ou seja, o não reconhecimento do caráter humano da criação da sociedade.
É neste sentido que Berger nos afirma que a religião seria legitimadora. O mundo social é chamado por ele denomos e seria um reflexo microscópico do “cosmos”.Em termos religiosos o nomos seria a ordem sagrada que se reafirma frente ao caos.
A nominização seria a função da sociedade em dar sentido à realidade humana, tendo em vista o cosmos, em oposição à anomia, ou caos, que seria os fenômenos do sofrimento, o mal e a morte, partes da experiência individual e coletiva. O papel decisivo da religião como legitimação do mundo social, é explicável por sua capacidade única de colocar os fenômenos humanos dentro de um marco de referência cósmico.
A religião seria, dessa forma, para Berger, “uma empresa humana” pela qual se “estabelece um cosmos sagrado” e a qual teria um papel estratégico para “construir mundos”, e dar a todo o universo um significado humano.
A teodicéia, nesse sentido, seria “uma explicação dos fenômenos anômicos em termos de legitimações religiosas, seja qual for seu grau de complexidade teórica”.
Berger diferencia as teodicéias, partindo da tipologia weberiana, em graus de racionalidade. Ou seja, que possam explicar de maneira coerente e sólida os fenômenos anômicos em termos de uma concepção totalizante do universo. Para o autor em todos os tipos de teodicéia há subjacente uma atitude “irracional”, que seria a redenção do eu ao poder ordenador da sociedade.
Para Berger, a teodicéia afetaria de maneira direta o indivíduo e sua vida concreta dentro da sociedade, e, brindaria primeiro os indivíduos não com o alívio dos seus infortúnios, mas sim, com o “significado” e o “porque” deles. O autor afirma ainda que não devemos considerar as teodicéias somente em termos de seu potencial “redentor”, pois, algumas não conteriam nenhuma promessa de redenção. No entanto, em concordância com Weber e Bourdieu, afirma que “uma das funções sociais das teodicéias é, na verdade, sua explicação das desigualdades sociais prevalecentes enquanto a poder e privilégio”.
Em relação à tipologia weberiana da teodicéia, Berger os apresenta dentro de um contínuo que vai do irracional ao racional.
1. Irracional: a transcendência simples do eu que origina a completa identificação com a coletividade. Pode ter um caráter masoquista, mas não necessariamente. Não há individuo radicalmente distinto de sua coletividade. O seu ser mais íntimo é o clã, a tribo, e o seu pertencimento ao coletivo. Essa fusão é felicidade ou infortúnio, no qual o indivíduo não pode negar a menos que negue seu próprio ser. Consequência desta teodicéia: os infortúnios da vida do individuo, incluindo morrer, se debilitam em seu impacto anômico, ao serem concebidos como meros episódios da historia comum da coletividade com a qual o indivíduo se identifica, o que possibilita menor anomia social. A coletividade seria vista como imortal, enquanto que os infortúnios coletivos seriam meros episódios. Este tipo seria uma teodicéia implícita, sem a necessidade de ulterior racionalização teórica.
2. Irracional: a teodicéia da participação auto-transcendente que não estaria limitada às religiões primitivas e persistiria onde prevalece o esquema micro-macrocósmico. No misticismo, os sofrimentos e morte do individuo se convertem em insignificantes trivialidades, irreais em comparação com a abrumadora realidade da experiência mística de união. O cotidiano e vida mundana se convertem em algo irreal, ilusório. Na medida em que tudo é ou está em Deus, tudo é bom e o problema da teodicéia desaparece. Desta forma, o misticismo nas grandes religiões mundiais deu origem a complexos sistemas teóricos contendo teodicéias explícitas de grande coerência racional.
3. Racional: o conjunto karma-samsara onde toda anomia concebível é integrada em uma interpretação totalmente racional eomnímoda do universo. Toda ação humana tem suas consequências necessárias e toda situação humana é a consequência necessária de ações humanas passadas. A vida do individuo é efêmera, parte de uma cadeia causal que se estende infinitamente ao passado e ao futuro. Para Berger, como também para Weber, o Karma-samsara é o exemplo de perfeita simetria entre as teodicéias do sofrimento e da felicidade. Esta teodicéia legitima a ordem social sendo, portanto, conservadora. Porém, dela surge uma ideia de redenção comolibertação final do ciclo de nascimento com diferentes versões dessa redenção. O Budismo representa a racionalização mais totalizante dos fundamentos teóricos do conjunto karma-samsara no nível da soteriologia e de sua teodicéia concomitante. O problema da teodicéia se resolve da maneira mais racional concebível, a saber, pela eliminação de todos os intermediários entre o homem e a ordem racional do universo; porque os fenômenos anômicos que dão origem se revelam como meras ilusões fugitivas, pois na concepção de anatta (não-eu) é o indivíduo que traça seus problemas.
Ainda segundo Peter Berger existiriam teodicéias com variados graus de racional-irracional e, portanto, ele os subdivide dentro da tipologia weberiana e os apresenta da seguinte maneira:
(A) Teodicéia terrenal que projeta a compensação dos fenômenos anômicos no futuro terreno através da intervenção da divindade; neste caso, os que sofrem serão consolados e os injustos serão castigados. Exemplos desta teodicéia seria o messianismo, o milenarismo e a escatologia. Essas teodicéias estão associadas historicamente às épocas de crises e desastres. Na teodicéia terrenal legitimam-se os fenômenos anômicos por referência a uma nomização futura, com o qual os reintegra a uma ordem significativa geral. Será racional na medida em que contenha uma teoria coerente da história. Uma dificuldade prática para essa teodicéia seria sua vulnerabilidade frente a uma refutação empírica. Tem-se, nessa teodicéia o sentido da vida futura como o lugar da nomização. Seria mais provável que se produzisse esta transposição quando a teodicéia prototípica por participação transcendente se debilita enquanto a sua plausibilidade, processo relacionado com a individuação progressiva.
(B) Numa posição intermediária entre racional e irracional está a teodicéia dualista do Zoroastrismo do Iran. Neste caso a luta entre o bem e o mal representaria os fenômenos anômicos (forças do mal ou negativas) e a nomização (forças do bem ou positivas). Tem-se, neste tipo, a influência do gnosticismo em relação à diferença entre espírito e matéria. A Redenção seria o Reino da Luz, esperança e nostalgia do verdadeiro lugar do homem. A resolução do problema da teodicéia estaria na transposição que se faz de seus términos; ou seja, o universo empírico deixa de ser um cosmos e se converte em cenário no qual se desenvolve a cosmização ou, é concebido realmente como o âmbito do caos. Tudo no mundo material e físico é desvalorizado de forma radical, a história é desprovida de significação redentora. A teodicéia dualista seria assim, acósmica, ascética e ahistórica. Isso é compreendido como uma ameaça às religiões bíblicas.
(C) Teodicéia das religiões bíblicas – que seria um problema maior para o monoteísmo ético. A relação entre a teodicéia bíblica e a atitude masoquista apresenta-se da seguinte forma: o masoquismo religioso adquire um perfil peculiar na órbita bíblica porque o problema da teodicéia se faz insuportavelmente agudo quando se define o “outro” como um deus todo-poderoso, todo-justo, etc. É a voz desse deus terrível que deve ser abrumadora e afogar o pranto do homem atormentado. A solução masoquista apresentada por essa teodicéia seria a submissão que não pode ser questionada ou desafiada, acima de toda norma humana ética ou nômica. Assim, da teodicéia tem-se a antropodicéia: o problema do pecado humano substitui o problema da justiça divina. Neste ponto Berger se afasta de Weber. Como essas ideias são difíceis para as massas, estas as mitigaram com a esperança e compensação em outro mundo.
(D) Mitigação da teodicéia masoquista: aCristologia. Este ponto apresenta-se como uma debilidade na tipologia weberiana. Berger apresenta o Deus encarnado como resposta ao problema da teodicéia (encarnação-redenção), este seria o deus encarnado, o deus que sofre. Este sofrimento, representado no sofrimento de Cristo aliviaria o homem. A relação do sofrimento com o Deus castigador está na plena divindade e humanidade do Cristo encarnado. Cristo sofreu pelos pecados do homem, o homem tem que reconhecer isso. A resolução agostiniana para o problema da teodicéia remete novamente da teodicéia para a antropodicéia, e mitiga a aspereza dos fenômenos anômicos com o deus-homem e o masoquismo.
Para fechar a sua análise sobre a teodicéia Berger se utiliza de sua categoria antropodicéia (o problema do sofrimento do mundo seria uma responsabilidade do homem). Para o autor, a plausibilidade do Cristianismo resistiria ou cairia junto com a plausibilidade desta teodicéia.
Para Berger, a conseqüência histórica da desintegração da teodicéia cristã seria o começo de uma era de revoluções. A História e as ações humanas na História se converteram nos instrumentos dominantes mediante os quais deve buscar-se a nomização do sofrimento e do mal. Com o questionamento da explicação cristã tem-se conseqüentemente o questionamento da ordem social; troca-se o reino da graça pelo reino da justiça.
Repitamo-lo: toda ordem humana é uma comunidade frente à morte. A teodicéia representa a tentativa de fazer um pacto com a morte. Seja qual for o destino de qualquer religião histórica ou ainda da religião como tal, podemos estar seguros de que a necessidade desta tentativa persistirá enquanto os homens morram e tenham que dar sentido a este fato.
1.2. PETER BERGER E O CONCEITO DE PLAUSIBILIDADE….
A relação íntima entre a religião e o homem se espelha na ordem moral e ética da sociedade, pois ambas advém de um corpus burocrático oriundo da religião enquanto instituição. Ademais, a questão da fé que o humano deposita no ente divino perpassa qualquer barreira de explicação racional. A racionalidade das teorias não consegue explicar de forma total e satisfatória a questão da fé. Nunca seremos capazes de explicitar a significação profunda e vital que a fé representa para o devoto.
A utilização da teoria de plausibilidade de Peter Berger nos ajudou a compreender como se configura o processo de legitimação de um determinado processo social.
Dentro desta perspectiva, buscamos em Peter Berger um maior aprofundamento nessa relação de intimidade entre o homem e a religião. O que observamos é que para ele a religião ocupa um lugar de destaque na construção de um mundo possível, aceitável pela população. Tentar fugir deste consenso significa sofrer sanções e estar fora do que pensa a maioria. É importante manter a estrutura de plausibilidade para um mundo socialmente construído, pois justifica até as guerras mais violentas advindas de ideias centrais vividas pela sociedade.
Na vida humana entende-se uma realidade que, por não vir pronta da natureza, como a do mundo biológico dos animais, precisa ser construída pelos homens. Uma realidade peculiar, a qual Berger explica da seguinte forma:
Como os outros mamíferos, o homem estáem um mundo que precede o seu aparecimento. Mas à diferença dos outros mamíferos, este mundo não é simplesmente dado, pré-fabricado para ele. O homem precisa fazer um mundo para si.
Mais adiante ele afirma que o homem “biologicamente privado de um mundo do homem, constrói um mundo humano. Esse mundo, naturalmente, é a cultura”.
Segundo Berger, o homem ao nascer é inserido no mundo onde irá começar a desenvolver-se biológica e culturalmente. O mesmo depende, pelo menos, de dois ambientes para sobreviver: o natural, que é considerado o particular, o familiar, cujo espaço irá adquirir traços característicos de sua linhagem; e o segundo ambiente, que é o sociocultural, onde o indivíduo irá criar laços sociais, observando que será impossível viver isoladamente.
A análise da realidade, definida por Berger, permite um acercamento do cotidiano, porque é na vida diária onde a imagem é mais visível e reconhecível. Diante disso, é passível o conhecimento de comportamentos humanos na dinâmica social, como também a verificação dos mecanismos de socialização que levam ao ‘equilíbrio’ do cotidiano, determinado pelo sentido comum, que é a lei comum das relações sociais. O indivíduo aparece como produto de um espaço social que é construído dialeticamente, depurado pelo consenso de seus atores, culminando na identidade da estrutura social.
A base para a aceitação social objetivada encontra-se nalegitimação, sobre a qual Berger nos diz que, a legitimação se entende o “saber” socialmente objetivado que serve para explicar e justificar a ordem social. Em outras palavras, as legitimações são as respostas a quaisquer perguntas sobre o “porquê” dos dispositivos institucionais.
Os discursos legitimadores ajudam a sustentar os mundos humanos. Contudo, a legitimação não garante a manutenção do mundo, estando ela só, é necessário que haja condições na estrutura da sociedade para que a mesma tenha efeito. A legitimação só terá validade se houver uma estrutura de plausibilidade, ou seja, de aceitação social. Não bastam que as respostas legitimadoras sejam repetidas indefinidamente. É preciso que a sociedade esteja estruturada para que essas respostas façam sentido. Quanto melhor a estrutura de plausibilidade da sociedade, mais explicações virão à tona acerca do mundo e, conseqüentemente, menos discursos legitimadores são necessários para a sua manutenção. Uma boa estrutura de plausibilidade resiste às anomias sociais, às guerras, enfim, aos problemas que norteiam o mundo.
Em “O Dossel Sagrado”, Berger fala da legitimação ocorrida em três níveis:
a) Nível pré-teórico, ou melhor, incipientemente teórico, em que a legitimação assume a forma de “provérbios, máximas morais e sabedoria tradicional”;b) Nível teórico: aqui são explicados e justificados os setores específicos do saber;c) Nível altamente teórico: as legitimações são integradas numa cosmovisão na qual se abrange tudo. Neste nível é atingida a consciência teórica.
A religião também tem sua base legitimadora. Existe uma importante relação entre elas. De acordo com a história, a religião foi o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação, e isso se deve ao fato de que a legitimação religiosa fundamenta a ordem social em origens que transcendem a história e o homem.
Segundo Berger, a religião faz parte do mundo criado pelo homem, como também da cultura estabelecida por uma comunidade de homens ou, antes, por uma sociedade, já que existe mais um acordo do que uma essência comum entre os indivíduos que compõem essa sociedade. Para Berger, a religião é a construção de um dossel sagrado que serve para explicar os fenômenos. O autor entende a cultura como o produto da atividade e da consciência humanas. E a religião entra em cena como o meio necessário para a manutenção desse mundo.
Para Peter Berger, “toda sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo. A religião ocupa um lugar destacado nesse empreendimento.” O mundo socialmente construído pelos homens se apresenta estruturalmente muito menos sólido do que o mundo biológico dos animais: “Todos os mundos socialmente construídos são intrinsecamente precários”. Daí surge a necessidade de unir esforços para que se mantenha o mundo humano. Essa manutenção é realizada através de discursos legitimadores, sendo o discurso da religião o mais eficaz para tal tarefa. “A religião legitima de modo tão eficaz porque relaciona com a realidade suprema as precárias construções da realidade erguida pelas sociedades empíricas”.
O fato de a cultura ser uma nova ordem ou um mundo construído a partir de um momento histórico específico representa uma preocupação a respeito de sua legitimação:
Se um indivíduo se imagina um fundador de sociedades consciente de seu papel, algo como uma combinação entre Moisés e Maquiavel, poderia ser colocada a seguinte questão: como se poderia assegurar a conservação dessa ordem institucional, nesse momento estabelecida ex–nihilo? Em termos de poder existe uma resposta óbvia a essa questão. Mas se se imagina que todos os meios de poder tenham sido empregados, todos os opositores destruídos, todos os meios de coerção à nossa disposição tenham alcançado um resultado positivo e que tenham sido tomadas todas as medidas razoáveis para a transmissão de poder aos sucessores designados, ficará ainda por resolver o problema de legitimação mais urgente, devido à novidade e à muito sabida precariedade da nova ordem.
A religião situa as instituições num quadro de referência sagrado e cósmico. A legitimação religiosa relaciona a realidade humana como a única definida numa coletividade humana. As atividades humanas, apesar de contraditórias, recebem a aparência de inevitabilidade, firmeza e durabilidade de suas construções ganhando, na visão de Berger, o statuscósmico.
A cosmoficação se refere, não só às estruturas nômicas gerais, mas, às instituições e papéis específicos numa dada sociedade. O status cósmico atribuído a eles é objetivado, isto é, torna-se parte da realidade objetivamente disponível das instituições e papéis em causa.
Na prática, as instituições mudam à medida que as exigências da sociedade mudam, portanto, estão sempre em ameaça devido à dialética que compõe a realidade. Mas, as legitimações cósmicas são aceitas como óbvias, passando por cima das contingências humanas e históricas, permitindo ao indivíduo ter um senso de retidão moral nos papéis que devem desempenhar na sociedade. E quando se vai contra essa ordem imposta, é, todavia, “aliar-se às forças primevas da escuridão”.
Na mente contraditória do indivíduo passam situações duvidosas a cada instante. “A realidade da vida de cada dia é, portanto, continuamente envolvida por uma penumbra de realidades imensamente diferentes.” A religião serve para entrosar as realidades invasoras e obscuras na realidade da vida cotidiana. Mantém a harmonia da vida real legitimando as situações marginais, tornando-as sagradas e aceitas pelo universo. Assim, o indivíduo continua a existir na sociedade, no seu “antigo” mundo, sabendo que seus questionamentos têm sentido e significam algo para si e para os outros.
Desse modo, é possível a manutenção de uma base social para continuar a existência humana com um mundo que é real para seres humanos reais. Quando o indivíduo deseja se converter deve desligar-se dos grupos que constituíam sua antiga estrutura de plausibilidade e associar-se mais intensamente àqueles que irão compor a sua nova realidade religiosa. De acordo com Berger, migrar entre mundos religiosos significa migrar entre suas respectivas estruturas de plausibilidade.
As atividades humanas que a sociedade produz também produzem religião, essa deriva da realidade objetiva e subjetiva dos homens e, para mantê-la, é necessário resolver um problema de “engenharia social”, pois, para permanecer em sua religião, o ser humano deve conservar uma estrutura adequada de plausibilidade.