O Sagrado e o Profano – Fichamento

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O desespero trata-se de uma doença  mortal cuja existência o homem, como homem, ignora. (Sören Kierkegaard)

Tentarei explicitar aqui os principais pontos acerca do sagrado na obra “O sagrado e o profano” (Mircea Eliade, 1992),

neste sentido são abordados trechos da obra com um brevê e objetivo comentário. Não há pretensão alguma de explorar os temas tratados nesta, apelas apresenta-los.

PREFÁCIO:

                        No prefácio é apresentado um breve histórico sobre o aparecimento  da “Ciência da Religião” enquanto disciplina autônoma.  Nota-se a preocupação de situar na linha temporal os marcos importantes acerca do estudo da religião.  

Mas se a ciência das religiões, como disciplina autônoma, só teve início no século XIX, o interesse pela história das religiões remonta a um  passado muito mais distante. Podemos localizar sua primeira manifestação na Grécia clássica, sobretudo a partir do século V. Esse interesse manifesta se. por um lado, nas descrições dos cultos estrangeiros e nas comparações com os fatos religiosos nacionais  – intercaladas nos relatos de viagens  –  e, por outro lado, na crítica  filosófica  da religião tradicional. Heródoto (c. 484 c. 425 A.C.,) já apresentava descrições admiravelmente exatas de algumas religiões exóticas e bárbaras (Egito, Pérsia. Trácia, Cítia etc.), e chegou até mesmo a propor hipóteses acerca de suas origens e relações com os cultos e as mitologias da Grécia. Os pensadores pré-socráticos, interrogando se sobre a natureza dos deuses e o valor dos mitos, fundaram a crítica racionalista da religião. Assim, por exemplo, para Parmênides (nascido por volta de 520) e Empédocles (c. 495-435). os deuses eram a personificação das forças da Natureza. Demócrito (c. 460-70), por sua vez, parece ter se interessado singularmente pelas religiões estrangeiras, que, aliás, conhecia de fonte direta em virtude de suas numerosas viagens: atribui se a ele, também, um livro Sobre as inscrições sagradas da Babilônia, as Narrativas caldéias e Narrativas frigias. Platão (429-347) utilizava frequentemente comparações com as religiões dos bárbaros. Quanto a Aristóteles (384 322), foi o primeiro a formular, de maneira sistemática, a teoria da degenerescência religiosa da humanidade (Metafisica, XIL, capítulo 7), ideia que, foi retomada várias vezes posteriormente. Teofrasto (372 287). Que sucedeu a Aristóteles na direção do Liceu. Pode ser considerado o primeiro historiador grego das religiões: segundo Diógenes Laércio (V. 48), Teofrasto compôs uma história das religiões em seis livros. (p.06)

            No texto apresentado a seguir Eliade chama a atenção para a importância das contribuições de filósofos, historiadores, sociólogos e psicanalistas no campo religioso.

Durante a primeira metade do século XIX surgem outros movimentos. Emile Durkheim (1858-1917) julgava ter encontrado no totemismo a explicação sociológica da religião. (O termo totem designa, entre os Odjibwa da América, o animal cujo nome o clã usa e que é considerado o antepassado da raça.) já em 1869, J. F. Mac Lennan afirmava que o totemismo constitui a primeira forma religiosa. Mas investigações posteriores, sobretudo as de Frazer, mostraram que o totemismo não se difundiu por todo o mundo e que. portanto, não podia ser considerado a forma religiosa mais antiga. Lucien Lévy-Bruhl tentou provar que o comportamento religioso se explicaria pela mentalidade pré-lógica dos primitivos – hipótese a que renunciou no, fim da sua vida. Mas essas hipóteses sociológicas não exerceram lima influência duradoura sobre as investigações histórico-religiosas. Alguns etnólogos, esforçando-se  por fazer de sua disciplina lima ciência histórica, contribuíram indiretamente para a história das religiões. Entre esses etnólogos, podemos citar Fr. Graebner. Leo Frobenius, W. W Rivers, Wilhelm Schmidt na Europa, e a escola americana de Franz Boas. Wilhelm Wundt (1832 1920), Willian James (1842-1910) e Sigmund Freud (1856-1939) propuseram explicações psicológicas da religião. A fenomenologia da religião teve o seu primeiro representante autorizado em Gerardus van der Leeuw (1890-1950). (p.11)

É mister ressaltar que a partir do século XIX as contribuições das diversas área do conhecimento  construíram uma perspectiva mais cientificista e histórica da esfera religiosa e o sagrado para a ser considerado entre duas orientações metodológicas.

Atualmente, os historiadores das religiões estão divididos entre duas orientações metodológicas divergentes, mas complementares: uns concentram sua atenção principalmente nas estruturas específicas dos fenômenos religiosos, enquanto outros se interessam de preferência pelo contexto histórico desses fenômenos; os primeiros esforçam-se por compreender a essência da religião, os outros trabalham por decifrar e apresentar sua história.(p.11)

INTRODUÇÃO:

              A maneira com que Saint Cloud constrói a introdução da obra é bem interessante, pois, apresenta “o sentimento de pavor diante do sagrado” segundo Rudolf Otto (Das Heilige).  O sagrado não deve ser se conter apenas aos limites da ciência empírica e observável, o sagrado se faz manifesto por meio do numinoso (latim numen-“deus”) e suas manifestações hierofânicas.    

Em outro texto da obra temos:

Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania, até a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer se torna outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania. (p.13)

Em suma a introdução apresentada por Saint Cloud deixa clara a importância da obra enquanto uma introdução a história da religião, entretanto, muito mais que uma história da religião percebo elemento da fenomenologia da religião que funcionam como “cola” ligando o fato histórico ao sentido fenomenológico da vida religiosa.

Este livro pode, pois, servir como uma introdução geral à história das religiões, visto que descreve as modalidades do sagrado e a situação do homem num mundo carregado de valores religiosos. Mas não constitui uma obra da história das religiões no sentido estrito do termo, pois o autor não se deu à tarefa de indicar, a propósito dos exemplos que cita, os respectivos contextos histórico culturais. Para fazê-lo, seriam necessários vários volumes. (p.16)

CAPÍTULO I – O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇAO DO MUNDO

            Este capítulo apresenta mostra a relação existente entre o sagrado e a fundação do mundo.  Visto que a religião passa a ter sentido a partir do  seguimento do universo por meio da criação dos deus. Desta forma, falar do profano é falar da origem de tudo. O pecado só tem sentido se passar pelo mito da criação assim como todo elemento ligado ao sagrado.

A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. Na extensão homogênea e infinita onde não é possível nenhum ponto de referência, e onde, portanto, nenhuma orientação pode efetuar-se, a hierofania revela um “ponto fixo” absoluto, um “Centro”[…] Para viver no Mundo é preciso fundá-lo  – e nenhum mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e da relatividade do espaço profano. A descoberta ou a projeção de um ponto fixo – o “Centro” – equivale à Criação do Mundo. (p.17)

O templo, o altar, o lugar sagrado, todos configuram–se em uma espécie portal de acesso aos deuses de onde os homem são levados para a comunhão com o sagrado.

lá, no recinto sagrado, torna-se possível a comunicação com os deuses; consequentemente, deve existir uma “porta” para o alto, por onde os deuses podem descer à Terra e o homem pode subir simbolicamente ao Céu. Assim acontece em numerosas religiões: o templo constitui, por assim dizer, uma “abertura” para o alto e assegura a comunicação com o mundo  dos deuses. (p.19)

Um dos motivos que torna o mundo religioso interessante é a geografia sacra que se funda na crença de certos lugares que desenvolvem um papel importante para compreensão do sentido de cada religião. Terra, Céus, regiões inferiores, passam a dar significações ao espaço sagrado.

Lá onde, por meio de uma hierofania, se efetuou a rotura dos níveis, operou se ao mesmo tempo uma “abertura” em cima (o mundo divino) ou embaixo (as regiões inferiores, o mundo dos mortos). Os três níveis cósmicos – Terra, Céu, regiões inferiores – tornaram-se comunicantes. Como acabamos de ver, a comunicação às vezes é expressa por meio da imagem de uma coluna universal, Axis mundi, que liga e sustenta o Céu e a Terra, e cuja base se encontra cravada no mundo de baixo (que se chama “Infernos”). (p.24)

O céu é o lugar sagrado, a morada dos Deuses, o ápice  da manifestação sagrada, a região cósmica hierofânica absoluta. A Terra passa a ser o centro da criação, onde os Deuses dão vida ao homem e ao ambiente natural. Desta forma define Eliade:

Céu é expressa indiferentemente por certo número de imagens referentes todas elas ao Axis mundi: pilar (cf. a universalis columna), escada (cf. a escada de Jacó), montanha, árvore, cipós etc.; (d) em torno desse eixo cósmico estende se o “Mundo” (“nosso mundo”) – logo, o eixo encontra-se “ao meio”, no “umbigo da Terra”, é o Centro do Mundo. (p.24)

(a) as cidades santas e os santuários estão no Centro do Mundo; (b) os templos são réplicas da Montanha cósmica e, consequentemente, constituem a “ligação” por excelência entre a Terra e o Céu; (c) os alicerces dos templos mergulham profundamente nas regiões inferiores. (p.26)

A antiga serpente, o horror, o dragão, são elementos que representam o caos, a destruição e a desordem. São a negação da vida, a descomunhão com o cosmos, a mote.        Em suma “fala se do “caos”, de “desordem”, das “trevas” onde “nosso mundo” se afundará.

No Ocidente, na Idade Média, os muros das cidades eram consagrados ritualmente como uma defesa contra o Demônio, a Doença e a Morte. Aliás, o pensamento simbólico não encontra nenhuma dificuldade em assimilar o inimigo humano ao Demônio e à Morte. Afinal, o resultado dos ataques, sejam demoníacos ou militares, é sempre o mesmo: a ruína, a desintegração, a morte. (p.30)

O universo “é sempre a réplica do Universo exemplar criado e habitado pelos deuses: participa, portanto, da santidade da obra dos deuses.” (p.23).  Nota-se ainda que o vocabulário mítico-sagrado sobreviveu ao tempo e permeia a cultura “laica” por meio de seu sentido transcendente:

Notemos que nos nossos dias ainda são utilizadas as mesmas imagens quando se trata de formular os perigos que ameaçam certo tipo de civilização: fala se do “caos”, de “desordem”, das “trevas” onde “nosso mundo” se afundará. Todas essas expressões significam a abolição de uma ordem, de um Cosmos, de uma estrutura orgânica, e a reimersão num estado fluido, amorfo, enfim, caótico. Isto prova, ao que parece, que as imagens exemplares sobrevivem ainda na linguagem e nos estribilhos do homem não religioso. (p.30)

Perceba que no primeiro capítulos existe uma preocupação na apresentação da gênese do espaço do sagrado. Fica ainda elucidada a influência da figura de Caos e Cosmo na cultura ocidental.

CAPÍTULO II   –  O TEMPO SAGRADO E OS MITOS

             Este capítulo trata da importância da percepção temporal a partir da perspectiva sagrada. Falar em ritos e festas tem o sentido de recriar o tempo da  interversão sagrado no tempo profano. Desta forma “Tempo sagrado, o tempo das festas (na sua grande maioria, festas periódicas); por outro lado, há o Tempo profano, a duração temporal ordinária na qual se inscrevem os atos privados de significado religioso” (p.30).

            Outro ponto extremamente relevante é entender o as comemorações anuais como um eterno retorno ao sagrado, “O Ano é um círculo em volta do Mundo”, quer dizer, em volta da sua cabana sagrada, que é uma imago mundi.”.  Em outro momento do mesmo capítulo fica ainda mais evidente, “o Ano Novo é uma reatualização da cosmogonia, implica uma retomada  do Tempo em seus primórdios, quer dizer, a restauração do Tempo primordial, do Tempo “puro”, aquele que existia no momento da Criação.” (p.30).  O motivo para tal regresso a origem sagrada é estar novamente nos brações de seu Criador. É como voltar para casa após uma longa e dura jornada. Para Elias: “o desejo do homem religioso de retornar periodicamente para trás, seu esforço para restabelecer uma situação mítica”(p.49). O autor chama esta atitude de “nostalgia das origens” na qual “O homem deseja reencontrar a presença ativa dos deuses, deseja igualmente viver no Mundo recente, puro e “forte”, tal qual saíra das mãos do Criador. É a nostalgia da perfeição dos primórdios que explica em grande parte o retorno periódico in illo tempore. (p.49).

            Vale ressaltar ainda o papel do mito no universo transcendente. Ao contrário do que muitos imaginam o mito não é apenas uma narração fantástica com figuras esdruxulas. Ao mito cabe a tarefa de desvelar o mistério da criação e apresentar ao homem o que realmente aconteceu. Eliade anuncia esta reflexão da sente maneira:

O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gesta constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados. O mito é pois a história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. “Dizer” um mito é proclamar o que se passou aborígine. Uma vez “dito”, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta. […]o mito é solidário da ontologia: só fala das realidades, do que aconteceu realmente, do que se manifestou plenamente. É evidente que se trata de realidades sagradas, pois o sagrado é o real por excelência. (p.50).

Na relação tempo e mito temos a construção do universo sagrado com seu sentido transcendental que busca a “reatualização dos mitos, o homem religioso esforça se por se aproximar dos deuses e participar do Ser; a imitação dos modelos exemplares divinos exprime, ao mesmo tempo, seu desejo de santidade e sua nostalgia ontológica.”(p.55).

            No cristianismo a percepção do sagrado rompe o in illo tempore e se constrói no tempo histórico e é nesta relação que Deus se faz homem e Deus ao mesmo tempo tornando a historia dEle mesmo uma história sagrada.

O cristianismo vai ainda mais longe na valorização do Tempo histórico. Visto que Deus encarnou, isto é, que assumiu uma existência humana historicamente condicionada, a História torna-se suscetível de ser santificada. O illud tempus evocado pelos evangelhos é um Tempo histórico claramente delimitado. santificado pela presença do Cristo. Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir se ao illud  tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara – mas já não se trata de um Tempo mítico, mas do Tempo em que Pôncio Pilatos governava a Judéia. (p.56).

CAPÍTULO III – A SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA

                       Para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente “natural”:

está sempre carregada de um valor religioso.

Mircea Eliade

            Olhar para natureza é ver revelado à obra do Deus criador, sendo assim, não na natureza é exatamente natural, mas, resultado da intervenção divina em nosso mundo. O homem religioso usa as lentes sagradas ao deslumbrar o universo que apresenta-se diante de seus olhos, consequentemente,  “a natureza sempre exprime algo que a transcende”. Para deixar ainda mais clara esta exposição acerca da natureza sacralizada, seguem alguns prontos apresentado no capítulo três

O nome de Deus e o céu:

O nome mongol do Deus supremo é Tengri, que significa “Céu”. O T’ien chinês denota ao mesmo tempo o “Céu” e “Deus do Céu”. O termo sumério para divindade, dingir, tinha como significado primitivo uma epifania celeste:  “claro, brilhante”. O Anu babilônio exprime igualmente a noção de “Céu”. O Deus supremo indo europeu, Diêus, denota ao mesmo tempo a epifania celeste e o sagrado (cf. “brilhar”, “dia”; dyaus, “céu”, “dia” – Dyaus, deus indiano do Céu). Zeus, Júpiter guardam ainda nos nomes a recordação da sacralidade celeste. O celta Taranis (de taran,  “trovejar”), o báltico Perkunas (“relâmpago”) e o protoeslavo Perun (cf. o piorum polonês: “relâmpago”) mostram sobretudo as transformações ulteriores dos deuses do Céu em deuses da Tempestade.(p.61).

A ação de Deus e as águas:

as águas existiam antes da Terra (conforme se exprime o Gênesis, “as trevas cobriam a superfície do abismo, e o Espírito de Deus planava sobre as águas”); (2) analisando os valores religiosos das Águas, percebe se melhor a estrutura e a função do símbolo. Ora, o simbolismo desempenha um papel considerável na vida religiosa da humanidade; graças aos símbolos, o Mundo se torna “transparente”, suscetível de “revelar” a transcendência. As águas simbolizam a soma universal das virtualidades: são  fons et origo, o reservatório de todas as possibilidades de existência; precedem toda forma e sustentam toda criação. (p.65).

As águas e o novo nascimento:

O contato com a água comporta sempre uma regeneração: por um lado, porque a dissolução é seguida de um “novo nascimento”; por outro lado, porque a imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida. À cosmogonia aquática correspondem, ao nível antropológico, as hilogenias: a crença segundo a qual o  gênero humano nasceu das Águas. Ao dilúvio ou à submersão periódica dos continentes (mitos do tipo “Atlântica”) corresponde, ao nível humano, a “segunda morte” do homem (a “umidade” e leimon dos Infernos etc.), ou a morte iniciática pelo batismo.[…] Águas equivale não a uma extinção definitiva, e sim a uma reintegração passageira no indistinto, seguida de uma criação, de uma nova vida ou de um “homem novo”, conforme se trate de um momento cósmico, biológico ou soteriológico. Do ponto de vista da estrutura, o “dilúvio” é comparável ao “batismo”, e a libação funerária às lustrações dos recém nascidos. (p.65).

A Terra: Do pó vieste ao pó retornará:

É a Terra Mater ou a Tellus Mater, bem conhecida das religiões mediterrânicas, que dá nascimento a todos os seres. “É a Terra que cantarei”, lê se no hino homérico à Terra, “mãe universal de sólidas bases, avó venerável que nutre em seu solo tudo o que existe… É a ti que pertence o dar a vida aos mortais, bem como o tomá-la de volta…” E nas Coéforas Esquilo glorifica a Terra, que “dá à luz todos os seres, nutre os e depois recebe deles de novo o germe fecundo” (p.69).

A verdade de que o homem nasce dó pó fica evidente:

 “A crença de que os homens foram paridos pela Terra espalhou se universalmente. Em várias línguas o homem é designado como aquele que “nasceu da Terra”.[…] Ao morrer, deseja se reencontrar a Terra Mãe, ser enterrado no solo natal. “Rasteja para a Terra, tua mãe!”, diz o Rig Veda (X, 18, 10).  “Tu, que és terra, deito te na Terra”, está escrito no Atharva Veda (XVIII, 4, 48). “Que a carne e os ossos voltem à Terra!”, pronuncia se durante as cerimônias funerárias chinesas. As inscrições sepulcrais romanas trazem o medo de ter as cinzas enterradas em outros lugares, e, sobretudo, a alegria de reintegrá-las à pátria: hic natushic Bitus est (CIL, V, 5595: “aqui nasceu, aqui foi colocado”): bic situs est patriae (VIII, 2885); hic quo natus fuerat optans erat illo reverti (V, 1703: “ lá onde nasceu, para lá desejou regressar”). (p.70).

“Here comes the Sun” – “Haja luz” e houve luz:

                                  

O herói é assimilado O Sagrado e o Profano ao Sol; como este, o herói luta contra as trevas, desce ao reino da Morte e sai vitorioso. Aqui, as trevas já não são, como nas mitologias lunares, um dos modos de ser da divindade, simbolizando, ao contrário, tudo o que Deus não é, portanto o Adversário por excelência. As trevas já não são valorizadas como uma fase necessária à Vida cósmica; da perspectiva da religião solar, as trevas opõem se à Vida, às formas e à inteligência. As epifanias luminosas dos deuses solares tornam se, em certas culturas, o sinal da inteligência. A assimilação Sol e inteligência chegou a tal ponto que as teologias solares e sincretistas do fim da Antiguidade se transformaram em filosofias nacionalistas: o Sol é proclamado a inteligência do Mundo, e Macróbio identifica no Sol todos os deuses do mundo Breco oriental, de Apolo e Júpiter até Osíris, Hórus e Adônis (Saturnais, 1, caps. 17 23).(p.78).

CAPÍTULO IV – EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA

            Este é o último capítulo apresentando na obra e trata da relação “corpo casa” do espírito, consequentemente a “casa” é vista “ao mesmo tempo uma imago mundi e uma réplica do corpo humano desempenha um papel considerável nos rituais e nas mitologias.” (p.86).

            Nas religiões apresentadas nesta obra o corpo tem uma relação direta com o cosmo e consequentemente com a criação.

                                  

“Habita-se” o corpo da mesma maneira que se habita uma casa ou o Cosmos que se criou para si mesmo (cf. cap. I). Toda situação legal e permanente implica a inserção num Cosmos, num Universo perfeitamente organizado, imitado, portanto, segundo o modelo exemplar, a Criação. Território habitado, Templo, casa, corpo, como vimos, são Cosmos. Mas todos esses Cosmos, e cada um de acordo com seu modo de ser, apresentam uma “abertura”, seja qual for o sentido que lhe atribuam as diversas culturas (“olho” do Templo, chaminé, torre de fumaça, brabmarandbara etc.) De uma maneira ou outra, o Cosmos que o homem habita – corpo, casa, território tribal, este mundo em sua totalidade – comunica se pelo alto com um outro nível que lhe é transcendente. (p.85).

A morte passa a ser vista como uma passagem capa de dar acesso a outro de realidade, a da alma. “Há, pois, uma correspondência estrutural entre as diversas modalidades de passagem: das trevas à luz (Sol), da preexistência de uma raça humana à manifestação (Antepassado mítico) da Vida à Morte e à nova existência post mortem (a alma). (p.87).

O elemento morte tem ainda o sentido de “novo nascimento” quando a morte se refere a uma nova percepção para espiritualidade, “morte para a condição profana, seguida do renascimento para o mundo sagrado, para o mundo dos deuses” (p.95).

O simbolismo do segundo nascimento ou da geração como acesso à espiritualidade foi retomado e valorizado pelo judaísmo alexandrino e pelo cristianismo. Fílon utiliza abundantemente o tema da geração para falar do nascimento a uma vida superior, a vida do espírito (cf. por ex., Abraham, 20, 99). Por sua vez, S. Paulo fala de “filhos espirituais”, dos filhos que ele procriou pela fé. “Tito, meu verdadeiro filho na fé que nos é comum”  (Epístola a Tito, I:4).  “Rogo-te por meu filho Onésimo, que gerei na prisão… (Epístola a Filémon, 10) (p.96).

Em suma, a importância de se compreender o homem religioso está nos vestígios que este deixou durante a construção de nossa civilização, vestígios estes que marcaram nossa maneira de perceber as relações humanas e sacras. Nossa língua e nossos valores passaram pelo numinoso que consequentemente construíram e desconstruíram as formas de percepções axiológicas. Somos filhos do sagrado no sentido etimológico e antropológico.

<!–[if !supportFootnotes]–>DADOS DA OBRA:

Dados sobre a obra:

O SAGRADO E O PROFANO

Mircea Eliade

ISBN 85 336 0053 4

Martins Fontes, 1992

São Paulo


<!–[endif]–>

<!–[if !supportFootnotes]–>[1]<!–[endif]–> Sören Kierkegaard, O Desespero Humano. Martin Claret, 2010