O mundo surge do caos
Esta lenda é diferente de todas as que você já ouviu. Tem seu início em uma época tão antiga, que é anterior a todas as outras histórias.
Para começarmos a contá-la desde o início, precisamos voltar séculos incontáveis no tempo, que não existe …
Naquela época tão longínqua, vivia (desde sempre!) um deus que se chamava Caos. Esse deus vivia só, isolado, sem que nada existisse à sua volta. Não havia, então, sol, luz, terra ou céu! Não havia nada além de uma densa escuridão e de um imenso vazio sem começo nem fim.
Dessa maneira passaram-se incontáveis séculos, até que, certo dia, o deus Caos se cansou de viver solitário; ocorreu-lhe, então, a idéia da criação do mundo.
O começo veio com o nascimento da deusa Gaia, a Terra. Era uma deusa lidíssima, cheia de força e vida, que cresceu e se alargou, envolvendo imensas extensões e tornando-se a base do mundo.
Em seguida, Caos gerou o terrível Tártaro, a negra Noite e, logo depois, o belo e luminoso Dia.
O reino do Tártaro eram às escuras entranhas da terra, tão profundas em relação à superfície quanto esta distava do céu. Se alguém, do céu, deixasse cair uma bigorna de ferro, esta ficaria caindo por nove dias e nove noites e somente no amanhecer do décimo dia é que atingiria o solo. Se, então, caísse da Terra em direção ao Tártaro, a queda duraria mais nove dias e nove noites, e somente ao raiar do décimo dia a bigorna chegaria lá embaixo! Tal é a profundidade em que o Tártaro está entranhado na Terra. Por isso a escuridão que ali existe é tão densa e negra. Porém, esse reino também é imenso em extensão. Se alguém entrasse lá, prosseguiria incessantemente, sendo arrastado por turbilhões enfurecidos, e nem mesmo em um ano poderia chegar ao outro lado …
No coração desse lugar terrível, temido até mesmo pelos deuses imortais, eleva-se o escuro palácio da Noite, eternamente envolvido em negras nuvens. Lá a Noite permanece durante todo o dia e, quando anoitece, sai para se estender sobre a Terra.
Gaia, mãe de todos
Depois do Caos, chegou vez da deusa Gaia, a Terra, auxiliar a criação do mundo. Querendo começar com algo bem bonito, gerou Ágape, a Ternura, a deusa que trouxe ao mundo a beleza da vida. Em seguida gerou o imenso Céu azul, as Montanhas e o Mar, todos estes poderosíssimos deuses, sendo o grande Urano, o Céu, o mais forte entre eles.
Dessa madeira, a deusa Gaia, mãe de todos, ao mesmo tempo em que se enfeitava e ficava mais bela, desfrutava do prazer da criação do mundo!
Urano, o céu: Soberano no mundo
No entanto, o grande deus do universo passou a ser Urano, que envolvera a Terra com seu azul, cobrindo-a de ponta a ponta. Ele se sentava em um magnífico trono de ouro, apoiado sobre nuvens multicores, de onde governava o mundo inteiro e os deuses todos!
Urano se casou com a deusa Gaia e com ela gerou muitos deuses. Doze deles eram os Titãs – seis homens e seis mulheres. Os Titãs eram deuses enormes e de força terrível. Um deles em especial, Oceano teve inúmeros descendentes e todos os rios do mundo eram seus filhos. E ainda tinha três mil filhas, as Oceâniades, que eram deusas das fontes e dos regatos.
Titãs e Ciclopes
Da união entre um outro titã, chamado Hipérion, e a titânide Téia, nasceram três belos deuses: o brilhante Hélios, que era o deus-sol, a Aurora, de dedos rosados, e Selene, a Lua prateada.
O último Titãs era o astuto e ambicioso Cronos, mas sobre ele temos ainda muito o que dizer mais adiante …
Também eram filhos de Urano e Gaia os furiosos Ciclopes, que eram deuses gigantes com apenas um olho, bem no meio da testa. Eram os senhores do fogo e tinham o domínio sobre os relâmpagos e os trovões. Habitavam as altas montanhas e sobre o cume de uma delas havia sempre fogo aceso. Era um vulcão enorme, que eles usavam para fabricar armas e armaduras. Os Ciclopes tinham uma força assustadora. Quando circulavam pelas montanhas, raios e trovoadas abalavam a terra e o mundo inteiro tremia à sua passagem.
No entanto, os mais terríveis entre os filhos de Urano e Gaia eram os três Hecatônquiros eram os mais altos de todos. Cada um deles tinha cem braços e sua força era tamanha que podiam arremessar rochedos grandes como montanhas, fazendo trepidar toda a Terra.
Agora os deuses eram muitos, mas Urano continuava a dominar o mundo e a ditar a ordem. Seu poder era imenso, sua vontade era lei e todos obedeciam às suas determinações. Feliz era a época do reinado de Urano. Naqueles tempos a morte não existia, nem maldade, nem ódio … Mas tudo acaba tendo um fim!
Urano pune seus filhos
Certa vez, Urano ficou muito zangado com seus filhos, os Titãs e os Hecantônquiros, que haviam se comportado mal perante ele, e decidiu castigá-los duramente. Gaia, a Terra, vendo a fúria do marido, ajoelhou-se diante dele e pediu que os perdoasse:
– Meu senhor e senhor do mundo inteiro – disse-lhe -, eu lhe suplico que perdoe nossos filhos e não traga a ruína para a família dos deuses!
A ira de Urano, porém, era desenfreada:
– Mãe dos deuses, no dia em que os filhos deixarem de respeitar o pai, deverão desaparecer da luz do dia! Se eu não lhes der o devido castigo eles irão se indispor contra mim novamente e podem até me derrubar do trono dos deuses! – respondeu Urano.
Dizendo essas palavras, o grande deus abriu a Terra e lançou os Titãs e os Hecatônquiros no escuro e profundíssimo Tártaro, onde a luz do dia não chega, nem o reflexo da noite, mas há somente uma densa, negra e interminável escuridão!
No entanto, a Terra gemeu profundamente por haver encerrado em suas entranhas os Titãs, seus filhos. Então, teve a ideia de falar com eles para incitá-los a uma revolta. Com esse intuito, ela os procurou e disse:
– Pobre de mim, que viverei eternamente tendo meus filhos presos no escuríssimo Tártaro! Quem entre vocês tem ousadia suficiente para se tornar senhor dos deuses? O seu pai já reinou por tempo suficiente! Agora chegou a vez de outro tomar o seu lugar!
Os Titãs, e até os próprios Hecatônquiros, baixaram a cabeça. Urano possuía uma força terrível e essa força era ainda cem vezes maior quando ele se enfurecia. O rosto de um dos Titãs, porém, resplandeceu de alegria: era Cronos, que sempre ansiava por se tornar o senhor do universo. E ele sabia bem que seu pai não deixava de ter razão ao lançá-los ao Tártaro. Mas agora chegava a sua vez.
Com a ajuda da mãe, Cronos saiu de sua escura prisão para a luz do dia. Como seus olhos estavam desacostumados à claridade, sofreram tamanha vertigem que nada podiam enxergar daquele mundo luminosos que se estendia diante deles. Logo, porém, acostumaram-se de novo e, então, Cronos pôde ver a belíssima Terra com as altas montanhas, o largo mar azul e o interminável céu cheio de luz, ao mesmo tempo em que sentia pelo corpo o calor do sol, que era como uma suava carícia!
– Mãe Terra, eu lhe agradeço por ter me considerado digno de ver novamente o magnífico mundo aqui de cima, o mundo que será meu! E agora, adeus! Sei o que devo fazer daqui por diante!
Imediatamente, Cronos desapareceu da vista de sua mãe. E tendo forjado uma grande foice, foi em seguida esconder-se no meio de uma nuvem e se pôs a voar alto pelo céu, à espera da oportunidade adequada.
Cronos depõe Urano do trono dos deuses
E eis que chegou a oportunidade que ele desejava ao encontrar Urano dormindo … Foi de modo traiçoeiro que tudo aconteceu num instante! Cronos golpeou o pai, ferindo-o gravemente entre as pernas e tornando-o incapaz não apenas de voltar a governar o mundo, mas também de gerar outros filhos!
– Meu êxito vale por dois – pensou Cronos -, afinal, agora não há mais nada que eu possa temer da parte de Urano!
Antes, porém, que chegasse a concluir seu pensamente, a voz do pai ecoou gravemente, como um mugido, enquanto o mundo todo escurecia e raios e trovões abalavam a Terra:
– Eu o amaldiçôo, cria desnaturada! Isso que fez contra o seu pai você há de receber dos seus filhos!
Qualquer um ficaria estarrecido depois de uma praga como aquela, mas Cronos sequer sentiu a menor aflição! Estava tão satisfeito com o seu êxito que não conseguia pensar que algo de mal pudesse vir a lhe acontecer. Tirou também os outros Titãs do Tártaro, e isso lhe deu uma sensação ainda maior de segurança, pois assim teria um apoio mais sólido para exercer seu poder. Quanto aos Hecatônquiros, porém, deixou-os aprisionados. A força deles o assustava, ao passo que os Titãs ele conhecia bem, e assim poderia sempre usá-los para o seu próprio interesse.
O mal aparece no mundo
Acontece que um dos Titãs, Oceano, não aceitou ajudar Cronos. Achava tão terrível o fato e um filho ferir o próprio pai e lhe tomar o trono que não queria de jeito nenhum se tornar cúmplice do irmão. Então, ele se retirou para os confins da Terra e passou a levar uma vida tranqüila, sem desejar nada que viesse do poder ilegítimo de Cronos.
Entretanto, o pior de tudo era que o ato tão perverso de Cronos foi a causa de todos os males do mundo. A deusa Noite, para castigá-lo, gerou uma multidão de divindades temíveis, como Tânatos (a morte), Apate (a fraude), Éris (a discórdia), Pesadelo, Nêmesis (Punição vingativa) e muitas outras. Cronos agora reinava, do alto do trono de seu pai, sobre um mundo cheio de medo, ilusão, ódio, agonia, vingança e guerra. E para sempre deuses e homens pagarão pelo erro de Cronos!
Cronos engole os filhos
O próprio poderosíssimo Cronos foi tomado de um grande pavor. Não estava mais seguro de que manteria o seu poder para sempre. Agora pensava com terror na maldição de Urano e temia que seus próprios filhos também viessem a se rebelar contra o pai, da maneira como ele mesmo havia feito.
Então, tomou uma decisão terrível! Ordenou à mulher, Réia, que toda vez em que desse à luz levasse a criança até ele, que, então, devorava o bebê imediatamente! Assim engoliu cinco filhos que Réia dera à luz: Hera, Deméter, Héstia, Hades e Possêidon.
Réia agora esperava mais um filho e estava totalmente desesperada. Não sabia o que fazer para salvar a criança. Então, correu até seus pais, Urano e Gaia, que a aconselharam a ir ter o filho em Creta, em uma caverna do monte Dicte, que era um lugar bem escondido, dentro de uma densa floresta. Nessa caverna sagrada, Réia deu à luz a seu bebê e o confiou às ninfas e fadas da floresta, que a haviam auxiliado durante o nascimento da criança. Em seguida, voltou secretamente para o palácio de Cronos e começou a gritar, como se estivesse sentindo dores do parto.
O terrível Cronos pensou que realmente sua mulher estava dando à luz naquela hora e não deixou de lembrar a ela a ordem que havia dado, por meio destas desumanas palavras:
– Mulher, vá terminando logo porque não posso escutar gritarias, e me traga a criança assim que nascer!
Dizendo isso, saiu dos aposentos de Réia.
Assim que ele a deixou sozinha, Réia apanhou uma pedra, envolveu-a em mantos e logo depois foi levar para Cronos, no lugar do recém nascido. O Titã, que nada havia percebido, ficou satisfeito e engoliu a pedra.
O bebê que havia sido salvo era Zeus …
Menelaos Stephanides – Os Deuses do Olimpo – Ed. Odysseus