A verdade absoluta existe? Toda verdade é relativa?
Desde os primórdios do pensamento, quando a filosofia ousou descortinar os véus da existência, a questão “o que é a verdade?” ecoa como um imperativo ontológico.
A Verdade Absoluta: A Luz da Aletheia Grega
A tradição filosófica ocidental nasce sob o signo de uma busca por uma verdade estável, perene e universal.
O próprio termo grego para verdade, Aletheia (ἀλήθεια), é filologicamente sugestivo. Composto pelo prefixo privativo ‘a-‘ e pelo radical ‘lethe’ (esquecimento, ocultação), a verdade é, em sua essência, um “não esquecimento” ou um “des-velamento”.

A verdade não é criada, mas descoberta; ela é a realidade que se revela ao intelecto atento, que emerge da escuridão do esquecimento e da ignorância.
Parmênides de Eleia, um dos pilares do pensamento pré-socrático, legou-nos uma concepção de verdade atrelada ao Ser. Para ele, a verdade é una, imutável, eterna e acessível apenas pelo caminho da razão (logos), em detrimento dos sentidos enganosos. A verdade é o que é, e qualquer desvio disso é o não-ser, o caminho do erro (KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 2004).
Esta noção encontrou seu apogeu em Platão. Em sua célebre Alegoria da Caverna, a verdade é representada pela luz do sol, externa à caverna das sombras e das aparências. A verdade (episteme) pertence ao Mundo das Ideias, um plano inteligível, perfeito e imutável, enquanto o mundo sensível, o interior da caverna, é o reino da opinião (doxa), da verdade relativa e transitória. A jornada do filósofo é uma ascese, uma dolorosa subida em direção à Aletheia, à contemplação do Bem e da Verdade em si mesmos (PLATÃO, 2002).
Essa busca por uma verdade absoluta e transcendente foi herdada e ressignificada pelo pensamento cristão. Santo Agostinho de Hipona, em um diálogo profundo com a filosofia platônica, identifica a Verdade última com o próprio Deus. As Ideias platônicas tornam-se, em Agostinho, os pensamentos na mente de Deus.
A verdade não é apenas um conceito a ser alcançado pela razão humana, mas uma realidade divina que ilumina a alma. “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! E eis que estavas dentro, e eu fora” (AGOSTINHO, 2002, p. 245).
A Verdade é, portanto, absoluta e transcendente, e o caminho para ela é um retorno interior em direção a Deus.
O Desafio Relativista e a Verdade como Subjetividade
Em contraposição a essa visão de uma verdade una e estável, floresceu na Grécia uma corrente cética e relativista, encabeçada pelos Sofistas. Influenciados pelo pensamento de Heráclito, para quem tudo flui (pantarhei) em um devir constante, os sofistas questionaram a possibilidade de um conhecimento universal e necessário.
Protágoras de Abdera proferiu a máxima do relativismo: “O homem é a medida de todas as coisas” (PLATÃO, Teeteto, 152a). A verdade, segundo ele, é subjetiva, dependendo da percepção de cada indivíduo.
Górgias de Leontinos levou o ceticismo ao extremo, argumentando que nada existe; se existisse, não poderia ser conhecido; e se pudesse ser conhecido, não poderia ser comunicado (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres). Para os sofistas, a verdade cede lugar à persuasão, e a retórica torna-se a arte de fazer o argumento mais fraco parecer o mais forte.
Séculos mais tarde, o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard retomaria a questão da verdade sob uma ótica existencial.
Para ele, a verdade não é uma proposição objetiva a ser apreendida, mas uma apropriação subjetiva e apaixonada. “A verdade é a subjetividade” (KIERKEGAARD, 1988). Isso não significa um retorno ao relativismo sofístico, mas uma ênfase na forma como o indivíduo se relaciona com o que crê.
A verdade essencial, a que diz respeito à existência e a Deus, não pode ser provada pela lógica ou pela ciência. Requer um “salto da fé”, um compromisso pessoal e arriscado que define a própria existência do indivíduo.
A verdade é buscada em Deus, não como um objeto de conhecimento, mas como o fundamento de uma relação existencial.
“Eu Sou a Verdade”: A Revelação Encarnada
É no seio deste vasto e complexo debate que a declaração de Jesus ressoa com uma profundidade única e transformadora. Ao dizer “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Yochanan 14:6, Bíblia Judaica Completa), Jesus desloca o eixo da busca pela verdade de um “o que” para um “quem”.
A verdade deixa de ser um sistema filosófico, uma ideia platônica, uma doutrina ou um conjunto de proposições lógicas, para se tornar uma Pessoa.
O teólogo D. A. Carson (1991) observa que, neste contexto, a verdade não é apenas uma conformidade com a realidade; Jesus é a própria realidade última de Deus manifesta aos homens. Ele é a Aletheia encarnada, o “des-velamento” perfeito do Pai. Nele, o véu que separa o humano do divino é rasgado. Conhecer a verdade é, portanto, conhecer a Cristo em uma conexão de fé e relacionamento com Deus.
Scot McKnight (2011) aprofunda essa perspectiva ao argumentar que a verdade no evangelho está intrinsecamente ligada à história de Israel e à fidelidade pactual de Deus. Jesus, como o Messias, é climax dessa história. Ele é a “verdade” de Deus no sentido de que Ele é a personificação da fidelidade e da promessa divina. Viver na verdade é participar da história do Reino que Ele inaugurou, uma história cujos valores éticos – amor, perdão, justiça e misericórdia – são a expressão prática da verdade que Ele é.
Do ponto de vista da psicanálise, podemos entender esta personificação da verdade como a resolução da alienação humana. O ser humano, em sua condição decaída, vive em uma constante busca por um significante mestre que ancore sua existência.
As ideologias, as filosofias e os prazeres mundanos oferecem-se como verdades parciais e, em última análise, frustrantes. Ao apresentar-se como a Verdade, Jesus oferece um ponto de ancoragem que não é um conceito abstrato, mas uma relação viva, capaz de reestruturar o psiquismo e oferecer um sentido que transcende a finitude e a angústia.
Considerações Sovre a Verdade
A jornada em busca da verdade, que se iniciou com a busca grega por uma episteme racional e universal, atravessou os desertos do ceticismo e encontrou na fé cristã uma nova dimensão.
Agostinho viu a Verdade em Deus, e Kierkegaard, na relação subjetiva com Ele. Contudo, a culminação desta busca se dá na pessoa de Jesus Cristo.
A afirmação “Eu sou a Verdade” não é uma proposição filosófica a ser debatida, mas um convite a uma relação transformadora. Para o cristianismo reformado, a verdade é, simultaneamente, absoluta, pois está ancorada no Deus soberano e imutável, e profundamente pessoal, pois é encontrada na comunhão com Cristo pelo poder do Espírito Santo.
Não se trata de possuir a verdade, mas de ser possuído por ela, de permitir que a vida, os pensamentos e as ações sejam moldados pela pessoa que é a própria Verdade. Nele, a sede da alma por sentido e realidade encontra sua fonte inesgotável.
Referências
AGOSTINHO. Confissões. 2ª ed. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002.
BÍBLIA Judaica Completa. Trad. David H. Stern. São Paulo: Editora Vida, 2010.
CARSON, D. A. The Gospel According to John. Grand Rapids: Eerdmans, 1991.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. Post-scriptum não científico e definitivo às Migalhas Filosóficas. São Paulo: Nova Cultura, 1988.
KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-socráticos. 6ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
MCKNIGHT, Scot. The King Jesus Gospel: The Original Good News Revisited. Grand Rapids: Zondervan, 2011.
PLATÃO. A República. 9ª ed. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.