A obra Crime e Castigo (1866), de Fiódor Dostoiévski, permanece como um dos maiores testemunhos literários sobre a luta interior do homem diante do pecado, da culpa e da possibilidade da redenção. Sob a lente da teologia reformada, enriquecida por categorias filosóficas de Kierkegaard, análises sociológicas de Berger e Weber, bem como pelo olhar psicanalítico de Lacan, é possível compreender Raskólnikov não apenas como personagem literário, mas como paradigma existencial.
Jesus nos lembra: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mateus 16:24). A negação do eu e o desapego ao mundo (1 João 2:15) são chaves interpretativas para ler a queda e o possível renascimento espiritual de Raskólnikov.
O Nível Estético: A Ilusão do Prazer e do Poder
Segundo Kierkegaard, o primeiro estágio da existência é o estético, marcado pelo prazer e pela evasão do sentido profundo.

Raskólnikov, ao justificar o assassinato da velha usurária em nome de um “bem maior”, ilustra o desejo humano de elevar o ego ao status de deus — como apontado: “cada movimento, intenção e desejo é direcionado pelo nosso ego, que busca satisfazer-se”
Esse autoengano conecta-se à categoria lacaniana do gozo, onde o sujeito tenta preencher seu vazio existencial com a transgressão, mas apenas intensifica sua alienação. A promessa de liberdade se transforma em prisão psíquica e espiritual.
O Nível Ético: A Culpa, a Lei e a Consciência
No segundo estágio, ético, o indivíduo se confronta com a moralidade e a responsabilidade. Raskólnikov, após o crime, é assolado pela culpa e pela angústia. Como afirma o livro Além da Angústia: “A mensagem subjacente de Crime e Castigo está na forma como cada escolha vai definindo aquilo que somos essencialmente”
Aqui se evidencia o paralelo com Max Weber, para quem a legitimidade da ordem social repousa na aceitação de normas. O jovem estudante tentou se colocar “acima da lei”, mas foi arrastado pela realidade inescapável de que a moralidade humana revela sua falência diante do pecado.
Na visão reformada, o eco é bíblico: “Se afirmarmos que estamos sem pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós” (1 João 1:8)
O Nível Religioso: Graça, Negação do Eu e Redenção
O climax ocorre quando Raskólnikov encontra em Sônia Marmeladov o reflexo da graça. Sua confissão diante dela é um ato de negação do eu e início de redenção. Sonia declara: “mesmo que eu seja a última pecadora, o menor de todos, ainda assim creio que Deus não me rejeitará”
Essa dimensão corresponde ao nível religioso de Kierkegaard, onde a vida só encontra sentido diante de Deus. Para Berger, é o ponto em que a realidade social é legitimada pelo sagrado; para a Reforma, é o instante da Sola Gratia, quando o pecador descobre que não pode se salvar, mas deve render-se ao Cristo que diz: “Quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á” (Mateus 16:25)
Conexões Teológicas e Psicanalíticas
Teologia Reformada: destaca a condição do homem como totalmente depravado, incapaz de justificar-se, necessitado da graça soberana. Observe como essa condição é apresentada pela Psicanálise e pela Sociologia.
- Lacan: mostra que o desejo humano é estruturalmente insatisfeito, ecoando a vaidade denunciada por Salomão em Eclesiastes.
- Weber: evidencia que nenhuma ordem humana é autossustentável sem fundamentos de legitimidade.
- Berger: recorda que a religião é o “dossel sagrado” que oferece sentido último.
No contexto literário, Dostoiévski conduz o leitor a reconhecer que o Evangelho é a única resposta para o dilema humano: negar a si mesmo, tomar a cruz e seguir a Cristo.
Conciderações
A jornada de Raskólnikov em Crime e Castigo não é apenas psicológica, mas profundamente espiritual. Ela revela que o pecado humano, ao buscar autonomia, conduz ao desespero; que a ética humana, embora necessária, é insuficiente; e que apenas no encontro com o Cristo que chama ao arrependimento e à fé se encontra o verdadeiro sentido da existência.
“Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Marcos 8:36).
Tabela Comparativa: Três Níveis
Autor | Nível 1 | Nível 2 | Nível 3 |
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Peter Berger (Legitimação – O Dossel Sagrado) | Pragmático/incipiente: ditados, provérbios, costumes, “sempre foi assim”. | Teórico/conceitual: cosmologias, narrativas, filosofias que dão sentido e coerência. | Simbólico-totalizante: religião; o sagrado como ordem última que legitima a sociedade. |
Max Weber (Tipos de Dominação) | Tradicional: obediência por hábito, costumes herdados. | Carismática: obediência ao líder dotado de autoridade excepcional. | Legal-racional: obediência às normas impessoais, sistema jurídico-institucional. |
Søren Kierkegaard (Estágios da Existência) | Estético: vida imediata, busca de prazer, aparência. | Ético: vida moral, responsabilidade, coerência interior. | Religioso: entrega ao absoluto, fé, relação direta com Deus. |
Referências Bibliográficas
BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado. São Paulo: Paulus, 1985.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001.
KIERKEGAARD, Søren. O Desespero Humano. São Paulo: Nova Cultura, 1988.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: Editora UnB, 1999.
BORGES, Renato Rodrigues. Além da Angústia: A Jornada Existencial na busca por Deus. 2. ed. Goiânia: professorrenato.com, 2024.
BÍBLIA. Português. Almeida Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
SPURGEON, Charles. O Evangelho Pleno. São Paulo: PES, 2003.
CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.