O texto em questão é encontrado na tradução de Almeida Revista e Atualizada, diz:
Vamos analisar João 2:4 a partir das lentes da hermenêutica (a ciência da interpretação) e da exegese (a análise crítica e detalhada do texto original).

João 2:4 (ARA): Respondeu-lhe Jesus: “Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora.”
À primeira vista, especialmente para a sensibilidade contemporânea, a fala de Jesus pode soar ríspida, distante ou até desrespeitosa. Contudo, uma análise exegética cuidadosa revela uma riqueza de significados teológicos e contextuais.
Vamos dividir a análise em duas partes, conforme a fala de Jesus.
“Mulher, que tenho eu contigo?” (em grego: Tí emoì kaì soí, gýnai? – τί ἐμοὶ καὶ σοί, γύναι;)
Esta é a parte que causa maior estranheza. Vamos analisar
a) A Palavra “Mulher” (Gýnai – Γύναι)
Análise Linguística e Cultural: Em nosso contexto cultural, chamar a própria mãe de “mulher” seria extremamente rude. No entanto, no grego koiné (o grego em que o Novo Testamento foi escrito) e na cultura da época, o termo gýnai não carregava essa conotação negativa. Pelo contrário, era um termo de tratamento formal e respeitoso. Não era um termo de intimidade casual (como “mamãe”), mas também não era um insulto. Poderia ser traduzido como “Senhora” ou “Dama”.
Exemplos Bíblicos: Jesus usa o mesmo termo em outras ocasiões de grande solenidade e até ternura. O exemplo mais tocante é na cruz, quando ele entrega sua mãe aos cuidados de João: “Ora, Jesus, vendo ali sua mãe e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse a sua mãe: Mulher (gýnai), eis aí o teu filho.” (João 19:26). Seria impensável que, em seu último momento de agonia, Jesus fosse desrespeitoso com Maria. Ele também usa o termo com a mulher samaritana (João 4:21) e com Maria Madalena após a ressurreição (João 20:15), sempre em contextos sérios e significativos.
Conclusão Hermenêutica: O uso de “Mulher” aqui estabelece uma nova forma de relacionamento. Jesus não está negando seu laço filial, mas está sutilmente indicando que a relação deles agora opera em uma nova dimensão. Ele não é mais apenas o “filho de Maria”; Ele é o Messias, o Filho de Deus, iniciando seu ministério público. É uma formalidade que demarca o início de sua missão divina, que se sobrepõe aos laços puramente terrenos.
b) A Expressão “Que tenho eu contigo?” (Tí emoì kaì soí? – τί ἐμοὶ καὶ σοί;)
Análise Linguística (Semitismo): Esta é uma expressão idiomática hebraica (um “semitismo”) traduzida para o grego. Literalmente, significa “O que para mim e para ti?”. Seu significado real é mais complexo do que uma simples pergunta. Ela é usada na Bíblia para indicar uma divergência de propósito, de método ou de momento entre duas partes. Não é necessariamente uma rejeição hostil, mas uma forma de dizer: “Nossos assuntos ou nossas esferas de ação são diferentes neste momento”, ou “Sua preocupação não se alinha com o meu propósito agora”.
Exemplos Bíblicos:
No Antigo Testamento: A viúva de Sarepta diz a Elias, quando seu filho morre: “Que te fiz eu, ó homem de Deus? Vieste a mim para trazeres à memória a minha iniquidade e matares o meu filho?” (1 Reis 17:18). Ela não está rompendo relações, mas questionando o propósito da presença dele em relação à sua tragédia.
No Novo Testamento: É a frase que os demônios usam ao se dirigirem a Jesus: “Ah! Que temos nós contigo, Jesus Nazareno?” (Marcos 1:24). Aqui, eles reconhecem que a esfera de santidade de Jesus não tem nada em comum com a esfera demoníaca deles.
Conclusão Hermenêutica: Jesus não está repreendendo sua mãe. Ele está estabelecendo uma distinção fundamental: a preocupação de Maria é resolver um problema social e familiar (a falta de vinho). A missão de Jesus, no entanto, é guiada por uma agenda divina, a agenda do Pai. Com essa frase, Ele está comunicando que Suas ações não serão motivadas por convenções sociais ou pedidos familiares, mas sim pelo tempo e propósito estabelecidos por Deus. Ele está gentilmente criando uma distância entre o pedido dela e a Sua motivação para agir.
- “Ainda não é chegada a minha hora.” (em grego: oúpō hḗkei hē hṓra mou – οὔπω ἥκει ἡ ὥρα μου)
Esta segunda parte da frase é a chave teológica para entender todo o Evangelho de João.
O Conceito da “Hora” em João: O termo “hora” no Evangelho de João é um conceito teológico de extrema importância. Ele quase nunca se refere a um momento específico no relógio. A “hora” de Jesus é o momento culminante de sua missão: sua Paixão, Morte, Ressurreição e Glorificação. É a “hora” para a qual Ele veio ao mundo (João 12:23, 27; 13:1; 17:1).
Implicação no Contexto: Ao dizer que sua “hora” ainda não chegou, Jesus está afirmando que este milagre em Caná não é o evento principal. É apenas um “sinal” (como João o chama no verso 11), um prenúncio da glória que será totalmente revelada em sua “hora” na cruz. Ele está colocando o milagre na perspectiva correta: não é um fim em si mesmo para resolver um problema de casamento, mas um meio para um fim muito maior – revelar Sua glória e iniciar o caminho que leva à cruz. Ele agirá, mas o fará de acordo com Seu próprio tempo e para o propósito do Pai, não simplesmente para atender a um pedido imediato.
Síntese Exegética e Teológica
Portanto, ao juntarmos as peças, a fala de Jesus a Maria em João 2:4 não é um ato de desrespeito filial, mas sim uma declaração teológica profunda e um momento de transição crucial:
Não é uma Rejeição, mas uma Reorientação: Jesus não rejeita sua mãe, mas reorienta a natureza do relacionamento deles à luz de sua missão pública. A lealdade primária d’Ele agora é para com o Pai celestial.
Não é Desrespeito, mas o Estabelecimento de Autoridade: A linguagem formal (“Mulher”) e a distinção de propósito (“Que tenho eu contigo?”) servem para afirmar que Suas ações messiânicas estão sob Sua própria autoridade e soberania, ditadas pelo cronograma divino.
Ação Soberana: Apesar de sua fala, Jesus realiza o milagre. Isso mostra que Ele não estava se recusando a ajudar. Pelo contrário, Ele ouviu a preocupação de sua mãe, mas agiu em Seus próprios termos, em Seu próprio tempo (logo depois) e por Sua própria razão: “e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele” (João 2:11). O resultado não foi apenas salvar a honra dos noivos, mas iniciar a revelação de Sua identidade divina.
Em suma, este versículo marca o momento em que Jesus, na esfera pública, declara que suas ações são governadas por uma vocação celestial, e não mais por obrigações terrenas ou familiares, ainda que Ele continue a honrá-las de uma nova maneira.
Referências Bibliográficas
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LENSKI, R. C. H. The Interpretation of St. John’s Gospel. Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1961. (Um comentário luterano detalhado e com ênfase gramatical).
LOURENÇO, José. O Quarto Evangelho: Uma Introdução à Teologia de João. São Paulo: Vida Nova, 2012. (Oferece uma boa visão geral da teologia joanina, incluindo o conceito de “hora”).
MORRIS, Leon. The Gospel According to John. Grand Rapids: Eerdmans, 1995. (Outro comentário exegético de alta qualidade).
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SCHREINER, Thomas R. New Testament Theology: Magnifying God in Christ. Grand Rapids: Baker Academic, 2008. (Aborda temas teológicos do NT, incluindo o evangelho de João).