A Reinvenção da Humanidade em “Só a Terra Permanece” de George R. Stewart: Uma Reflexão Existencial à Luz de Kierkegaard
George R. Stewart, em sua obra Só a Terra Permanece (Earth Abides), nos apresenta um cenário pós-apocalíptico onde um vírus dizima a humanidade, deixando apenas alguns sobreviventes para reconstruir o mundo. Essa narrativa, além de ser uma reflexão sobre a fragilidade da civilização, ressoa profundamente com as ideias do filósofo existencialista Søren Kierkegaard, especialmente em conceitos como angústia, desespero e a busca pelo significado em um mundo desprovido de certezas absolutas. Ao traçar paralelos entre a obra de Stewart e os escritos de Kierkegaard, como O Conceito de Angústia, Migalhas Filosóficas e O Desespero Humano, podemos explorar as camadas filosóficas que tornam essa história tão impactante.
A Angústia do Fim e a Liberdade do Recomeço
Kierkegaard, em O Conceito de Angústia, descreve a angústia como uma sensação que surge diante da liberdade e das infinitas possibilidades que se abrem ao ser humano. Ela não é apenas medo ou ansiedade, mas uma consciência da responsabilidade que vem com a liberdade de escolha. Em Só a Terra Permanece, o protagonista, Isherwood “Ish” Williams, experimenta essa angústia de forma aguda. Diante do colapso da civilização, ele se vê livre das estruturas sociais, políticas e culturais que antes definiam sua existência. No entanto, essa liberdade não é confortável; ela é esmagadora.
Ish, como um intelectual, carrega o peso do conhecimento dos Velhos Tempos. Ele sabe o que foi perdido — não apenas as mazelas da humanidade, mas também suas conquistas gloriosas. Essa consciência o coloca em um estado de angústia kierkegaardiana: ele é livre para reconstruir o mundo, mas também é responsável por essa reconstrução. Como Kierkegaard escreve em O Conceito de Angústia: “A angústia é a vertigem da liberdade”. Ish sente essa vertigem ao olhar para o vazio deixado pela epidemia e ao perceber que o futuro da humanidade depende, em grande parte, de suas escolhas.
O Desespero Humano e a Busca por Significado
Em A Doença para a Morte, Kierkegaard explora o conceito de desespero como uma condição inerente ao ser humano. O desespero, para ele, não é apenas um sentimento passageiro, mas uma falha em reconhecer e abraçar o próprio “eu” diante do infinito. Em Só a Terra Permanece, os sobreviventes da epidemia enfrentam esse desespero de maneiras diferentes. Alguns, como Ish, lutam para manter viva a memória dos Velhos Tempos, enquanto outros, como os membros mais jovens da comunidade, vivem em um estado de quase indiferença em relação ao passado.
Kierkegaard diria que o desespero surge quando o indivíduo não consegue reconciliar o finito com o infinito, o temporal com o eterno. Ish personifica essa luta. Ele tenta preservar o conhecimento e a cultura dos Velhos Tempos, mas percebe que, em um mundo onde a sobrevivência é a prioridade, essas coisas perdem seu significado imediato. Como Kierkegaard escreve: “O desespero é a miséria do eu”. Ish experimenta essa miséria ao ver que suas tentativas de manter viva a civilização são, em grande parte, inúteis. No entanto, é justamente nesse desespero que ele encontra a possibilidade de transcendência. Ao aceitar a impermanência de tudo o que foi construído, ele pode começar a construir algo novo.
Migalhas Filosóficas e a Verdade Subjetiva
Em Migalhas Filosóficas, Kierkegaard discute a ideia de que a verdade não é algo objetivo, mas subjetivo. Para ele, a verdade é uma questão de como o indivíduo se relaciona com ela, e não de fatos ou dados externos. Em Só a Terra Permanece, essa ideia se reflete na maneira como os sobreviventes lidam com o novo mundo. Para as gerações que nascem após a epidemia, os Velhos Tempos são irrelevantes. Eles não têm conexão emocional ou intelectual com o passado; para eles, a verdade está no presente, na luta pela sobrevivência e na construção de uma nova sociedade.
Ish, no entanto, representa a tensão entre o passado e o presente. Ele carrega consigo as “migalhas” do conhecimento antigo, mas percebe que essas migalhas não são suficientes para alimentar o futuro. Como Kierkegaard escreve: “A vida só pode ser entendida de trás para frente, mas deve ser vivida para frente”. Ish tenta entender o passado para dar sentido ao presente, mas, no final, ele precisa aprender a viver no agora, aceitando que o futuro será moldado por aqueles que não compartilham suas memórias ou valores.
Conclusão: A Terra Permanece, e com Ela, a Possibilidade de Renascimento
Só a Terra Permanece é uma obra que ressoa profundamente com as ideias de Kierkegaard sobre angústia, desespero e a busca por significado. Stewart nos mostra que, mesmo diante da destruição total, a humanidade tem a capacidade de se reinventar. Ish, como um personagem kierkegaardiano, enfrenta a angústia da liberdade e o desespero da impermanência, mas, ao fazer isso, ele abre caminho para um novo começo.
Kierkegaard nos lembra que a existência humana é marcada pela luta constante entre o finito e o infinito, entre o passado e o futuro. Em Só a Terra Permanece, Stewart nos mostra que, mesmo quando tudo parece perdido, a Terra permanece — e com ela, a possibilidade de renascimento. Como Ish descobre, o verdadeiro significado da vida não está no que perdemos, mas no que podemos construir a partir das cinzas. E, nesse sentido, a obra de Stewart não é apenas uma história sobre o fim do mundo, mas também um testemunho da resiliência e da esperança humanas.
“A vida não é um problema a ser resolvido, mas uma realidade a ser experimentada”, escreveu Kierkegaard. E, no mundo pós-apocalíptico de Stewart, essa experiência é tanto uma tragédia quanto uma oportunidade — uma chance de recomeçar, de encontrar novos valores e, talvez, de redescobrir o que realmente significa ser humano.
KIERKEGAARD, Søren. O Conceito de Angústia. Tradução de João Lopes Alves. Petrópolis: Vozes, 2010.
KIERKEGAARD, Søren. Migalhas Filosóficas. Tradução de Ernani Reichmann. Petrópolis: Vozes, 1995.
KIERKEGAARD, Søren. A Doença para a Morte: Um ensaio psicológico cristão. Tradução de Alvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 2008.
STEWART, George R. Só a Terra Permanece (Earth Abides). Tradução de José Sanz. São Paulo: Aleph, 2013.